Shaun Tan, CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, p. 7. Do conto “O Búfalo do Rio”.
Não sei por que o búfalo sempre aponta na direção certa. Mas acho que sei.
O búfalo do rio que vivia no terreno baldio, primeiro conto de CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, respondia sempre do mesmo jeito às crianças do bairro que vinham pedir conselho. “Ele se levantava bem devagar, erguia a pata esquerda e apontava exatamente a direção certa”. Era só seguir a direção que a pata apontava e a solução estaria lá. Não que ele explicasse ou fizesse algo além de apontar. Búfalos do rio não são de conversa. Mas a solução estava lá, onde ele apontou.
É difícil agrupar o tema (ou temas) que atravessam CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES – e, por sinal, toda a obra do Shaun Tan, que inclui A CHEGADA, A COISA PERDIDA, REGRAS DE VERÃO etc. “O desconhecido que é familiar”, quem sabe? Tan usa imagens (e não estou falando só das ilustrações) que parecem saídas de uma imaginação à parte da realidade, desconectada de qualquer raiz no nosso mundo. É imaginação, é fantasia, é metáfora, mas… não é só isso.
Shaun Tan, CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, p. 36, do conto “Ressaca”
Em outro conto de SUBÚRBIOS, “A história do vovô”, uma das ilustrações mostra o casal nubente correndo de televisores que têm pernas e presas afiadas. No contexto do conto – sobre as antigas práticas matrimonias (?), quando o casal tinha que passar a véspera do casório percorrendo o território que está além dos mapas (??) até encontrar algo que não lhes informam o que é (???) e voltar a tempo da cerimônia -, a ilustração parece ativar uma sinapse de relação de uma possível possibilidade de talvez ser algo que quem sabe tenha a ver com… alguma coisa. O que a gente costuma chamar de “eu acho que é isso”.
Acho que “País nenhum” é o conto que mais me atinge pessoalmente – embora eu não viva em outro país onde o inverno ou verão me sejam estranhos e nem, principalmente, que eu tenha um “pátio de dentro” como o da história (por enquanto). Mas o final do conto me fez levantar e ficar olhando pela janela por uns 15 minutos. Na verdade, todos os contos falam comigo, mas parece que este exigiu que eu repensasse este “outro país”. Ainda estou procurando o pátio de dentro.
Shaun Tan, CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, p. 81, do conto “Velório”
O fato é que Tan reduz suas narrativas (e não estou falando só do texto) ao mínimo absoluto, de forma que você pode encaixar nelas o universal. Ele deve ter aprendido nas aulas de desenho que o rosto mais sintético é o que mais cria identificação e aplica isso não só às ilustrações, mas ao texto. É específico sem ser.
Não que os contos sejam tão abertos ao ponto de permitir tudo. A genialidade de Tan é a afinação precisa, equilibrada, cristalina, entre o quanto deve ficar em aberto e o quanto se pode dar de elementos para o leitor identificar uma sensação, uma emoção, uma vivência. “Uma imagem vale mil palavras e você põe as suas imagens pra trabalhar”, como resume Neil Gaiman, falando de CONTOS numa conversa com o próprio Tan que saiu no Guardian.
Shaun Tan, CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, p. 22-23, do conto “Brinquedos quebrados”
Na minha carreira relativamente curta de tradutor, CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES foi o projeto do qual mais tive orgulho de participar – com perdão a todos os outros. É um desafio, como sempre, transferir estilo e intenções de um autor para o português, mas desafio maior quando parece que o texto não tem uma só palavra – nem as ilustrações têm um só traço – fora do lugar. O meu espanto-admiração por Tan, que vem desde A CHEGADA, também não fica a meu favor. Ou talvez colabore, justamente pela admiração. Espero ter conseguido manter as imagens do autor a “trabalhar”.
Acho que sei por que o búfalo sempre aponta na direção certa. Acho que sei porque os televisores perseguem o casal. Acho que já vi “Os gravetos” e acho que sei onde os irmãos chegaram em “Nossa expedição”. Acho que você também vai achar.
Escrevi o texto acima há onze anos. Ele foi publicado com o título “Achos Distantes” no Blog da editora CosacNaify, que não existe mais. Nem blog, nem editora. Mexi um pouquinho para republicar aqui.
Na CosacNaify, o livro chamava-se CONTOS DE LUGARES DISTANTES. É o mesmo livro que vai ser republicado no mês que vem pela Darkside com o título CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, um pouco mais próximo do título original.
Eu retraduzi os 15 contos.
O original chama-se TALES FROM OUTER SUBURBIA. Quando eu traduzi pela primeira vez, pesquisei o nome que o livro tinha ganhado em outros países (se retrotraduzidos). Virou CONTOS DO SUBÚRBIO DISTANTE na França, CONTOS DO SUBÚRBIO DO UNIVERSO na Alemanha (adorei a relação outer suburbia/outer space), CONTOS DA PERIFERIA na Espanha, PEQUENAS HISTÓRIAS DA PERIFERIA na Itália, HISTÓRIAS DA PERIFERIA na Noruega e CONTOS DOS SUBÚRBIOS em Portugal.
A editora da CosacNaify – a mais atenciosa com quem eu já trabalhei – explicou que eles não queriam usar “subúrbio” nem “periferia” porque “tem uma conotação, pra gente, de lugar precário, carente... E, no meu entender, o emprego de subúrbio aqui é única e exclusivamente um lugar distante do centro, periférico.” Foi assim que o livro virou CONTOS DE LUGARES DISTANTES.
Com a Darkside, sugeri CONTOS DA VIZINHANÇA ou CONTOS DOS BAIRROS ou CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES. Foi de olho numa parelha com a tradução de TALES FROM THE INNER CITY (contos do centro?), livro-irmão que o Tan lançou depois – e cujo lançamento ainda pode rolar.
CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES não é quadrinho. É um livro ilustrado, em que as ilustrações têm um peso um pouco maior do que no típico livro ilustrado. Até daria pra chamar uns dois ou três contos de quadrinhos. O letreiramento, adaptação gráfica e tudo mais, muito importante pro livro (e que a Darkside costuma fazer muito bem), é de Eldon Oliveira.
Por exemplo, a minha casa. Ela é de uma curadoria imensa. Às vezes parece um museu. E eu fico pensando: qual é o sentido de juntar esse monte de coisa, de investir tanto em tanta coisa, se um dia você vai morrer e alguém vai espalhar tudo isso?
Somos apenas formiguinhas numa bola de lama. Mas nós construímos uma caixa, e vamos encher essa caixa de coisas, e essas coisas vão ficar numa determinada ordem e nós vamos morar no meio dessas coisas. Isso tem um poder, algo que é mágico e que é esquisito. Como se você estivesse armando um feitiço. Que não significa nada, fora o que nós dissermos que significa.
Cada mínima coisa nesta casa é um objeto que um ser humano criou. Não tem um significado real, só tem significado para seres humanos. Criamos uma lista infinita e bizarra de linguagens, e vivemos dentro dessas linguagens. Cada coisa é armada para outra coisa. Não há criatura que vá entender o que estes símbolos significam. Só nós entendemos. E seguimos assim. Sempre mais, mais, mais.
Não tem nada que os seres humanos façam mais do que bolar símbolos e objetos. Não temos um só guarda-chuva, temos milhões de tipos de guarda-chuva. Isso é muito estranho, estranhíssimo, e imagino que seja um acidente cósmico. Seja o que for, é o que faz a vida ter sentido.
Seth, ou Gregory Gallant, que fez 61 anos na semana passada, mas preferia viver na época em que nasceu, ou antes. Veste-se como tal. A foto abaixo (de Pere Galceran, roubei daqui) é do ano passado.
A resposta ali em cima vem quando o entrevistador pergunta a Seth por que suas histórias gostam tanto de passear pela casa e pelos objetos dos personagens.
Em resumo, é porque a casa do próprio Seth é cheia de objetos. Ele é um colecionador. E deu essa uma declaração perfeita sobre colecionismo.
A entrevista foi a Thomas Hummitzsch, aqui.
Um dos melhores quadrinhos para mostrar como Seth explora um personagem através de sua coleção de coisas é GEORGE SPROTT, 1894-1975. Não vi a edição brasileira (com tradução de Aline Zouvi, editora Mino), mas recomendo ler qualquer edição. [amazon].
Passei três dias em Porto Alegre para compromissos de família e o trabalho ficou bastante comprometido. Ainda rolou aquele feriado gaúcho no meio da semana.
O tradutor, vocês sabem, não tem feriado. Os filhos do tradutor, por outro lado, têm. Complica.
Enfim. No início da semana entreguei aquela graphic novel de 400 e tantas páginas, tradução em colaboração, e torço que anunciem logo.
Acabei a primeira versão de CHRISTIE10, faltavam 38 páginas. Ia passar às revisões, mas a editora pediu para eu deixar CHRISTIE10 em banho-maria devido a uma outra tradução urgente. Vamos chamar essa urgente de MESADOCANTO. Já traduzi 35 páginas de MESADOCANTO.
Mais dois capítulos de ATRAVÉS DO ESPELHO. Mais 22 páginas daquele quadrinho que ainda não me pediram, mas vão me pedir. Mais 48 de um gibi que me pediram. E no fim da semana me pegaram de surpresa: um Neil Gaiman inédito, que eu começo na semana que vem.
A passada por Porto Alegre valeu umas boas horas de papo com o Vinicius, do 2Quadrinhos, e ajustar minhas colaborações com o canal. Já fui o redator em partes de três vídeos: nesse, nesse e nesse. Estou fechando agora partes do que ele vai noticiar no 2Quadrinhos News de domingo. Tá sendo ótimo voltar a essa vida de escrever notinhas sobre HQ.
em setembro
UM CORPO NA BANHEIRA, Dorothy L. Sayers, harpercollins
VAMPIRO AMERICANO, ED. DE LUXO VOL. 4, Scott Snyder e Rafael Albuquerque, panini
LÚCIFER: ED. DE LUXO VOL. 2, Mike Carey, Peter Gross, Dean Ormstron, panini
SANDMAN APRESENTA VOL. 6: GAROTOS DETETIVES MORTOS & LOVE STREET, Ed Brubaker, Bryan Talbot, Peter Hogan, Michael Zulli, panini
em outubro
ANIQUILAÇÃO: A CONQUISTA (OMNIBUS), Dan Abnett, Andy Lanning e grande elenco, panini [traduzi só os extras]
SETOR UM, Colson Whitehead, harpercollins
CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, Shaun Tan, darkside
MONICA, Dan Clowes, nemo
em novembro
A BRIGADA DOS ENCAPOTADOS, K.W. Jeter, John K. Snyder III, Dave Louapre, Dan Sweetman, Alisa Kwitney, Guy Davis, John Ney Rieber, John Ridgway, panini
CAPITÃ MARVEL VOL. 9, Kelly Thompson, Sergio Dávila, Marguerite Sauvage, Torun Gronbekk e mais, panini
ESTÁ TUDO BEM VOL. 1, Mike Birchall, suma
vem aí
NUNCA ME ESQUEÇAS, Alix Garin, moby dick [já existe, quem apoiou no catarse está recebendo; mas ainda não está à venda pra todo mundo]
NOVEMBRO VOL. 3 e 4, Matt Fraction e Elsa Charretier, risco
VOLEUSE, Lucie Bryon, risco
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
CHEW VOL. 4, John Layman e Rob Guillory, devir
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
COMIC BOOKS INCORPORATED, Shawna Kidman
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, Lewis Carroll
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
+ Adrian Tomine
+ Tom Scioli
+ Tom Gauld
+ Ray Bradbury
+ Shaun Tan
+ Conan
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
Laerte, pensando como tradutora, aqui.
“CHÔUT!” Em MANÉ GARRINCHA, de Fabiano Santos e Samuel Bono. Vi a página aqui. O quadrinho está em campanha de financiamento coletivo no Catarse - você pode apoiar aqui. Tem mais páginas de preview no link.
O CASTELO RÁ-TIM-BUM de Felipe Nunes. Vi aqui.
De WONDER WOMAN n. 1, por Tom King (roteiro), Daniel Sampere (desenhos), Tomeu Morey (cores), Clayton Cowles (letras).
De Lucas Ferreyra. Vi aqui.
A VIRAPÁGINA está ganhando novos assinantes aos poucos. Muito obrigado a quem acabou de chegar e a quem recomendou.
Aliás, se você puder recomendar para todo mundo que acha que vai gostar dessa cartinha semanal, agradeço muito.
E vire muitas páginas até a próxima.
Essa página de mulher maravilha, bom de usar em sala de aula pra explicar conceitos de hq
Érico, uma correção: GEORGE SPROTT, 1894-1975 saiu pela Mino