006: MORRER NA PRANCHETA
Joe Matt | minha semana | pré-vendas | capitalismo | páginas viradas
Vi o André Valente, quadrinista e amigo, tuitanto sobre a morte do Joe Matt e perguntei se ele queria botar alguma coisa pra fora. Ele queria.
Então, com vocês, André Valente:
Histórias de terror para quadrinistas
Eu já passei quatro dias sem dormir. Eu trabalhava com ilustração, tinha filhos pequenos, no tempo livre fazia quadrinhos. Pra cumprir prazos, eu trabalhava de madrugada.
Na noite do quarto dia, li a notícia de que David Bowie morreu. Vi o dia nascer e nunca me senti tão cansado, tão machucado, tão perto de causar danos permanentes à minha saúde.
Desde janeiro de 2016, nunca mais virei noite por trabalho. Hoje, tentando desesperadamente terminar um livro que está bem atrasado, tento organizar meu tempo de uma forma mais saudável. Mas ainda sinto culpa. Uma parte de mim ainda acha que virar umas madrugadas pode adiantar o serviço. É comum eu estar cercado da família num dia feliz, com um macaco pendurado nas costas lembrando da página que falta terminar hoje. Aquele meme do cara isolado na festa, olhando as pessoas felizes dançando, pensando “eles não sabem que depois disso eu ainda tenho que colorir uma página”.
Todo dia eu sento na prancheta depois de todo mundo ter dormido, na esperança de adiantar um pouco o trabalho de amanhã. E o cansaço é tão grande que eu não consigo fazer nada. Já perdi as contas de quantas vezes eu dormi na prancheta.
Joe Matt morreu na prancheta, aos 60 anos. Na homenagem que Chester Brown prestou ao amigo, ele menciona que nos últimos dois anos só faltavam finalizar quatro páginas pro gibi novo ficar pronto. Quem conhecia Matt e sua famosa escassez de produção não estava surpreso com a demora. Outro amigo dele, Seth, brinca, daquele jeito tão triste do Seth brincar, que duvida que Matt estivesse trabalhando quando morreu, mas que talvez pensar em realmente fazer quadrinhos seja o que tenha lhe dado um infarto.
Dizem que Matt reclamava de dores no peito há algumas semanas. O alter ego dele nos quadrinhos autobiográficos era pão-duro demais pra ir ver um médico. Não é de espantar, pelas histórias de terror que a gente ouve do sistema de saúde estadunidense.
Anotei num caderninho uma palavra em japonês, “karoshi”, que quer dizer “morte por excesso de trabalho”. De vez em quando a gente esbarra em história de quadrinistas e animadores japoneses que morrem disso, em forma de infarto, derrame ou suicídio. Karoshi é, pra mim, uma assombração mais assustadora que a menina d’O Chamado.
Em junho deste ano, o quadrinista Ian McGinty morreu aos 38 anos. Rapidamente espalhou-se o boato de que ele tinha morrido de exaustão. A comunidade de quadrinistas, inspirada pela notícia trágica, começou a compartilhar pelas redes sociais outras histórias de terror, de calotes, de trabalhos roubados e de contratos injustos e demoníacos. Foram semanas de angústia seguindo a hashtag #ComicsBrokeMe, praticamente um creepypasta de condições desumanas de trabalho.
Agora me aparece um novo vilão no mundo dos quadrinhos: as últimas quatro páginas do Joe Matt. Pra quem precisa de grana, terminar um gibi pode ser uma salvação. Um quadrinista conhecido como ele tem uma quantidade garantida de leitores. Mas mesmo Seth diz que entende um bloqueio, e que as condições mentais de Matt o botavam com frequência em um ciclo de dano. A ansiedade da perfeição, a pressão da qualidade, o medo de decepcionar. Sentar na prancheta e não conseguir a paz mental pra trabalhar parece um castigo do Tártaro.
Fazer quadrinhos é um se-ficar-o-bicho-pega constante. Não é bem pago, demora demais e dá trabalho demais. Quem não publica sofre e quem publica toma rasteira. Nem todo mundo consegue reconhecimento, e entre quem consegue, nem todo mundo tem a paz de espírito pra fazer. E apesar de tudo, ainda tem gente que gosta.
A gente insiste, contra tudo e contra todos. É incrível que ainda tenha gente fazendo quadrinhos num mundo onde custa tão caro ir parar no hospital, onde é tão difícil ter acesso a um bom tratamento psicológico. Que atração maluca é essa, que vício, que dificuldade de deixar pra lá e seguir a vida. Aquele meme do policial perguntando a um homem de identidade protegida, “ela deu oito facadas no senhor, e o senhor voltou com ela?”
Deixem-me ir, preciso andar, tenho uma página pra terminar.
Joe Matt foi encontrado morto no dia 17 de setembro, em casa, supostamente caído em cima da prancheta.
Como o André já falou, amigos próximos do cara riram do detalhe “morto em cima da prancheta”. Riram em público. Matt era preguiçoso e procrastinador crônico, o inverso da ideia de alguém que trabalhou até o último minuto.
Nada do trabalho autoral e autobiográfico de Joe Matt saiu no Brasil. O que saiu com seu nome por aqui foram alguns gibis do Batman que ele coloriu. Li muito pouco dos quadrinhos dele, apesar de saber da importância que tinha ali nos anos 1990, início dos 2000. Matt não publicava absolutamente nada de novo desde uma última coletânea, Spent, de 2007. É o das páginas acima e abaixo. Nem era reeditado, apesar de ganhar traduções na Espanha e na França em tempos recentes.
Li Spent há uns dias. Ficou a dúvida se Matt não publicava mais nada porque não produzia ou se não era mais publicado (nem reeditado) porque as editoras tinham medo de cancelamento. Confessar neurose masculina, vício em pornografia e relacionamento abusivo (em que ele também era abusador), hoje em dia não cola como sinceridade escancarada nem como rir da própria cara. Fazer piada de si mesmo sendo canalha não é mais piada - é reforço para o tanto de homem que não pede desculpa por ser canalha.
Como o André também falou, vez que outra se ouve história de quadrinistas que morrem em cima da prancheta, por excesso de trabalho e com pouca idade. Tem muitos japoneses. Osamu Tezuka morreu aos mesmos 60 de Joe Matt. A anedota que contam de Tezuka é que ele brigou com a enfermeira que não deixava ele desenhar no leito de hospital onde estava morrendo.
Não tem só o excesso de trabalho ou a pouca idade, mas também questões de personalidade difícil, que tornam a pessoa isolada, sozinha. Joe Matt foi encontrado morto e não vi obituário que diga há quantos dias ele não era visto. Richard Sala, que faleceu em 2020, também era sozinho e seu corpo foi encontrado dias depois da morte. Com Steve Ditko foi a mesma coisa em 2018. Lembro que amigos ficaram um dia ou mais sem contato com o Ota até também encontrá-lo morto, há dois anos.
Não sou quadrinista, por isso foi muito bom ter a perspectiva de quadrinista do André Valente a respeito de como essas “mortes na prancheta” causam frios na espinha de quem trabalha na prancheta.
O que fez o frio subir na minha espinha foi a declaração, que não consigo localizar agora, de uma amiga do Joe Matt se perguntando o que iam fazer com os arquivos dele, com os trabalhos inacabados etc. Ele não tinha família.
Lembrei na hora de um amigo dos quadrinhos, que pediu para eu guardar um material dele e que tem idade relativamente próxima da do Joe Matt.
Tive que parar e pensar bastante para elaborar a pergunta do jeito menos funesto, mas tive que perguntar.
Mandei uns links sobre o Matt e soltei: “O que você quer que eu faça com esse material quando, bate na madeira, eu não conseguir mais conversar contigo?”
Esta semana trabalhei em uma tradução curtinha, de poucas páginas, que tem a ver com o início da minha carreira de tradutor. Talvez eu possa contar mais daqui a umas duas newsletters.
O sufoco da semana foi PAÍS LIVRE (que talvez vire TERRA LIVRE): UM CONTO DA CRUZADA DAS CRIANÇAS. Faltava revisar, descobrir umas rimas que eu não tinha me dado conta que eram rimas, depois revisar todas as 205 páginas de novo. Está entregue. Sai em dezembro.
Deu para traduzir mais de 55 páginas do projeto MESADOCANTO, revisar 28 e fazer a leitura final de 20 – preciso entregar esse aos pouquinhos.
Só para ter um primeiro contato, abri outro quadrinho grandão que apareceu para traduzir esta semana e fiz duas páginas (mas duas páginas grandes). Vou chamar de projeto HONGKONG.
Fiz os dois capítulos protocolares de THROUGH THE LOOKING GLASS (ainda sem atacar nada de complicado), não mexi no CHRISTIE10 (o prazo mudou para depois do MESADOCANTO) e tive que desmarcar gravação do Notas dos Tradutores (desculpa, amiguinhos). A semana que vem podia ser mais suave. Não vai ser.
Apareceu na Amazon a versão em audiolivro de um dos Agatha Christie que eu traduzi para a HarperCollins: POR QUE NÃO PEDIRAM A EVANS?
Imagine alguém lendo o que você escreveu em voz alta, e gravando em um microfone – a narração é de Leonardo Senna – e alguém ouvindo o que eu escrevi por oito horas e meia. Provavelmente não vou fazer nada disso, porque não leio de novo o que eu traduzi, quanto mais leio em voz alta ou ouço na voz de outros.
Achei curioso porque já traduzi para audiolivro, mas nunca tinha traduzido um livro pensando o que podia virar audiolivro. E não sei o quanto o texto é adaptado em relação ao impresso.
POR QUE NÃO PEDIRAM A EVANS?, Agatha Christie [audible]
Também brotaram umas pré-vendas: SANDMAN APRESENTA VOL. 8: TEATRO DA MEIA-NOITE é metade a reedição de uma história, a titular, que eu traduzi há dez anos para uma coletânea chamada DIAS DA MEIA-NOITE (e que também saiu em outra coletânea, anos depois, a SANDMAN EDIÇÃO DEFINITIVA n. 5). É Gaiman, sempre bom traduzir Gaiman e lembrar que eu traduzi Gaiman.
A outra metade dessa edição é uma minissérie do Destino e outras HQs curtas que eu não traduzi.
SANDMAN APRESENTA VOL. 8: TEATRO DA MEIA-NOITE [loja panini]
Também apareceu em pré-venda O GATO PETE E OS QUATRO BOTÕES BACANÕES, de James Dean e Eric Litwin. Já traduzi quatro livrinhos do Gato Pete, que são como pílulas contra a ansiedade infantil. E feitos para pré-leitores, para os pais lerem junto com os filhos. Muita rima e besteirinha boa.
Os livros têm só umas 100 palavras e são leituras de minutos, mas tomam alguns dias de tradução. Livro infantil é assim: parece simples, não é. Modéstia à parte, a editora elogia minhas soluções.
O GATO PETE E OS QUATRO BOTÕES BACANÕES, James Dean e Eric Litwin [amazon]
Outros livros que traduzi da série:
O GATO PETE - EU AMO MEU TÊNIS BRANQUINHO [amazon]
O GATO PETE QUER DORMIR [amazon]
O GATO PETE E OS ÓCULOS MÁGICOS [amazon]
Os links abaixo são de trabalhos meus com lançamento em breve. Comprar pelos links da Amazon me rende uns centavos. Se puder, use os links.
em outubro
SANDMAN APRESENTA VOL. 7: BAST & O CORÍNTIO, Caitlín R. Kiernan, Joe Bennett, Darko Macan, Danijel Zezelj, panini
KULL: A ERA CLÁSSICA (OMNIBUS), Roy Thomas, Berni Wrightson, Marie Severin, John Severin, Doug Moench, John Bolton, Chuck Dixon, Dale Eaglesham e grande elenco, panini
ANIQUILAÇÃO: A CONQUISTA (OMNIBUS), Dan Abnett, Andy Lanning e grande elenco, panini [traduzi só os extras]
VAMPIRO AMERICANO, EDIÇÃO DE LUXO VOL. 4, Scott Snyder, Rafael Albuquerque e companhia, panini
SETOR UM, Colson Whitehead, harpercollins
CONTOS DOS SUBÚRBIOS DISTANTES, Shaun Tan, darkside
MONICA, Dan Clowes, nemo
POR QUE NÃO PEDIRAM A EVANS? (audiolivro), Agatha Christie, harpercollins
O GATO PETE E OS QUATRO BOTÕES BACANÕES, James Dean e Eric Litwin , harpercollins
em novembro
A BRIGADA DOS ENCAPOTADOS, K.W. Jeter, John K. Snyder III, Dave Louapre, Dan Sweetman, Alisa Kwitney, Guy Davis, John Ney Rieber, John Ridgway, panini
CAPITÃ MARVEL VOL. 9, Kelly Thompson, Sergio Dávila, Marguerite Sauvage, Torun Gronbekk e mais, panini
ESTÁ TUDO BEM VOL. 1, Mike Birchall, suma
LITTLE NEMO VOL. 2: 1910-1914, Winsor McCay, figura [a tradução é de Cesar Alcázar; eu escrevi um posfácio compriiiido]
em dezembro
CONAN, O BÁRBARO: A ERA CLÁSSICA VOL. 7, James Owsley, John Buscema, Val Semeiks e mais, panini
TERRA LIVRE: UM CONTO DA CRUZADA DAS CRIANÇAS, Neil Gaiman, Chris Bachalo, Alisa Kwitney, Jamie Delano, Peter Snejbjerg, Toby Litt, Peter Gross e mais, panini
SANDMAN APRESENTA VOL. 8: TEATRO DA MEIA-NOITE, Neil Gaiman, Matt Wagner, Teddy Kristiansen e outros, panini [metade do volume tem outras HQs por outros tradutores]
vem aí
NUNCA ME ESQUEÇAS, Alix Garin, moby dick
NOVEMBRO VOL. 3 e 4, Matt Fraction e Elsa Charretier, risco
VOLEUSE, Lucie Bryon, risco
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
CHEW VOL. 4, John Layman e Rob Guillory, devir
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
COMIC BOOKS INCORPORATED, Shawna Kidman
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, Lewis Carroll
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
+ Adrian Tomine
+ Tom Scioli
+ Tom Gauld
+ Ray Bradbury
+ Shaun Tan
+ Conan
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
O melhor dos eventos. Tuíte original aqui.
11 anos de Vitralizado, uma das inspirações desta newsletter. Cartaz do Gustavo Magalhães! Mais aqui.
Ricardo Coimbra, aqui.
Adoro essa página e agora adoro essa capa. Vi aqui.
O André Valente, colaborador da newsletter de hoje, é um pequeno gênio dos quadrinhos, foi um dos ilustradores do meu livro Balões de Pensamento, o melhor anfitrião que eu podia ter em Angoulême e o site dele é andrevalente.me. A página acima veio daqui.
Alguns assinantes da VIRAPÁGINA comprometeram-se a virar assinantes pagantes. Eu só não autorizei os pagamentos até agora porque quero ter certeza de que consigo manter alguma periodicidade.
Meu plano inicial não era ser rigoroso na newsletter semanal. Ia fazer umas quatro semanas seguidas e parar uma, algo assim. Mas parece que está funcionando semanal.
A colaboração financeira, é claro, é um bom incentivo para eu manter o ritmo. Mas falamos da VIRAPÁGINA paga mais pra frente.
Obrigado pela leitura e que você vire boas páginas.
Não conhecia Joe Matt, mas me vi ali, preguiçosa, procrastinadora e de pouca produção. Vou procurar mais coisas dele para procrastinar mais de desenhar as páginas q preciso.
Obrigada pelo newsletter, Érico.
Sua newsletter é uma delícia de leitura. Obrigada!