Estou de férias. Tentando tirar férias. Os trabalhos que deviam ter acabado em janeiro invadiram fevereiro e meus dedinhos estão gritando por descanso.
Por conta disso, a newsletter desta semana e da próxima reproduzem dois textos que eu já publiquei. Eles saíram em dois volumes da COLEÇÃO SNOOPY, CHARLIE BROWN & FRIENDS, da editora Planeta DeAgostini. Traduzi e escrevi prefácios de 56 dos 61 volumes da Coleção, lançada entre 2021 e 2022.
É um texto sobre a criação de Franklin, o garoto negro de PEANUTS. Lembrei do texto porque vi a notícia sobre um especial animado com Franklin que estreia na Apple Plus no dia 16 (semana que vem). Também porque gosto desse texto, modéstia à parte.
Volto em breve com a estrutura de sempre da virapágina. Bom descanso a quem puder descansar. Juro que eu vou tentar.
Começou com uma carta. Uma carta muito bem escrita, pensada e ponderada para tocar não só o coração, mas a mente racional de Charles Schulz. Veio de uma leitora, mãe de leitores e cidadã preocupada com os rumos dos Estados Unidos.
O nome da leitora era Harriet Glickman. Naquele momento, ela era dona de casa e cuidava dos três filhos, mas já havia trabalhado como professora do ensino fundamental. Na casa de Harriet, segundo a carta, todos eram apaixonados por Peanuts: a filha adolescente tinha cadernos estampados com a turma, o do meio jogava beisebol por inspiração em Charlie Brown e o mais novo não sabia ler, mas vivia agarrado em um Snoopy de pelúcia; a própria mãe e o marido discutiam a Peanuts de cada dia na mesa do café da manhã.
Não era uma carta para dizer apenas isso. Por conta do que ela dizia sobre sua relação com a tira, e do que acreditava que fosse verdade para vários lares nos Estados Unidos, Glickman considerava que Peanuts seria o espaço perfeito para discutir um problema que assolava o país: o racismo.
“Desde a morte de Martin Luther King, tenho me questionado em relação ao que posso fazer para mudar as circunstâncias na nossa sociedade que levaram àquele assassinato e que contribuem para este mar de incompreensão, medo, ódio e violência”, ela escreveu.
E o que Peanuts podia fazer a respeito? Trazer um personagem negro à tira, algo que ela não tinha até então. “A introdução de crianças negras no grupo de personagens Schulz poderia ocorrer com impacto mínimo”, ela escreve.
Ela tinha ciência de que seria algo “radical” para a tira, na época, e que poderia causar atritos entre Schulz, seu syndicate e os jornais em que ele publicava. Mas aquela mãe suburbana também se disse confiante no status e na reputação do cartunista como uma pessoa aguerrida a suas convicções.
A carta é de 15 de abril de 1968. Como é mencionado pela missivista, Martin Luther King Jr. havia sido assassinado há pouco tempo. Onze dias antes, para ser exato.
Pastor batista com mais de uma década dedicada ao ativismo não violento pelos direitos dos negros nos Estados Unidos, King foi uma das maiores lideranças sociais que o país já teve. Ele e uma rede de ativistas tomaram medidas contra a segregação e a discriminação em escolas, estabelecimentos comerciais e nas eleições. O discurso em que ele repete “Eu tenho um sonho”, feito durante a Marcha Sobre Washington de 1963, é um dos mais citados no mundo.
Em 4 de abril de 1968, enquanto estava em um hotel em Memphis, Tennessee, King levou um tiro de espingarda. O atirador era James Earl Ray, um ladrão que, segundo se concluiu à época, estava indignado com as conquistas que King havia obtido em prol da integração racial nos estados do sul dos EUA.
O assassinato é um marco sombrio na história do racismo e da intolerância. Entre as várias ondas sísmicas que provocou no país de King e no mundo, ele afetou uma dona de casa de 42 anos em Sherman Oaks, Califórnia. Também afetaria Charles Schulz e, por conseguinte, Peanuts.
Schulz respondeu à senhora Glickman poucos dias depois de receber a carta. Tradicionalmente avesso a sugestões de como trabalhar na sua tira, ele se disse grato, contudo, à sugestão de introduzir uma criança negra – e disse que aquela já era uma discussão corrente entre os cartunistas dos EUA. À época, com raras exceções, todos os cartunistas eram brancos.
Só havia um percalço. “Todos gostaríamos muito de fazer [o que você propõe], mas todos temos medo de sermos paternalistas com nossos amigos negros”, Schulz escreveu. “Não sei qual seria a solução.”
Se, em algumas regiões, os Estados Unidos ainda viviam um período de racismo violento, de verdadeira perseguição aos negros e segregação declarada – mesmo com leis recentes que proibissem a segregação racial –, nas regiões mais esclarecidas a discussão sobre as relações entre brancos e negros era acalorada.
O “paternalismo” que Schulz menciona era o medo de parecer condescendente: de um homem branco apresentar-se como salvador, o amigo que ajuda os negros a conquistar seu espaço, e assim manter a relação de superioridade que tanto se queria derrubar. É uma discussão que se tem até hoje nas relações entre todas etnias.
Glickman, de qualquer maneira, não se demoveu com a resposta. Se Schulz não tinha uma solução, ela ia ajudá-lo a encontrar.
Na sua segunda carta ao autor, a leitora diz que considera o dilema interessante e pede uma autorização: ela poderia tirar esta dúvida com amigos negros? “As respostas deles, como pais, podem ser úteis para seu raciocínio quanto ao assunto”, Glickman escreveu a Schulz.
Em carta de 9 de maio, Schulz prontamente concordou, mesmo que não tenha dado muitas esperanças à correspondente. Ele reforçou suas preocupações: “Faria alegremente um teste, mas tenho certeza de que receberia críticas que ressaltariam que meu trabalho é condescendente”, escreveu. “Quanto mais penso no problema, mais me convenço de que seria errado da minha parte.”
Foi aí que um terceiro personagem entrou na história. Harriet Glickman tinha pelo menos um amigo negro, pai de dois filhos, que poderia dar sua perspectiva confiável e fundamentada sobre o significado que uma criança negra teria em Peanuts. O nome deste amigo era Kenneth C. Kelly.
Não por acaso, Kelly tinha histórico na luta contra o racismo. Nova-iorquino de nascença, filho de empregada doméstica, ele se destacou numa escola técnica do Brooklyn na área de eletrônica, que o levou a atuar na mesma área na Marinha. A cor da pele já lhe tinha sido um ponto negativo naquele contexto: disseram que ele nunca poderia ficar acima de um militar branco. Eram fins dos anos 1940, e o fim da segregação nas forças armadas dos EUA estava começando a ser implementado pelo presidente Harry S. Truman.
Kelly saiu da Marinha para a universidade e, de lá, para a Hughes Aircraft, uma das maiores empresas de desenvolvimento de aeronaves e tecnologia de defesa do mundo. Passou por mais um percalço: quando ele entrou, a empresa questionou se seus colegas aceitariam trabalhar com um negro. Alguns disseram que não. A Hughes, então, comunicou que ou eles trabalhavam com um colega negro ou pediam demissão.
Na empresa, ele ajudou na criação de sistemas de mísseis teleguiados e nas tecnologias de satélites terrestres que viriam a ser utilizadas para acompanhar as missões especiais Apollo. Publicou artigos na área de eletrônica e, até o fim da vida profissional, registrou mais de uma dúzia de patentes.
Mesmo com esse currículo impressionante, ele acabou ganhando mais fama por uma disputa no ramo imobiliário. Quando quis comprar uma casa no subúrbio de Gardena, próximo à Hughes Aircraft, não conseguiu encontrar um corretor que quisesse atender um cliente negro. Acabou tendo que fazer a compra através de um amigo branco. Assim que se mudou com a família para o bairro, foi recebido pelos vizinhos com medo e recebeu cartas dizendo que sua presença ali baixaria os valores dos imóveis.
Depois de trocar de emprego e ter que se mudar para outro subúrbio na Califórnia, Kelly passou pela mesma experiência pela segunda vez. Ele viria a largar o emprego para se tornar corretor imobiliário e trabalhar no apoio à entrada de famílias negras nos subúrbios segregados da sua região.
Este currículo todo tinha importância, mas, no que concerne a Peanuts e a Charles Schulz, Ken Kelly era apenas um pai de família e amigo de Harriet Glickman, a dona de casa que sugeria um personagem negro nas tiras de jornal. A convite dela, Kelly escreveu e enviou uma rápida justificativa a Schulz.
O cartunista poderia ser acusado de paternalismo? Sim, era possível. Mas “seria um pequeno preço a se pagar pelos resultados positivos que o senhor alcançaria”, Kelly opinou.
A carta também registra a preocupação de Kelly quanto à representação dos negros em todas as mídias, até mesmo como figurantes em filmes. Ele dizia que, no cinema, era mais comum ver um negro num filme de penitenciária do que passando ao fundo em um saguão de hotel.
Em relação às tiras de jornal, sua sugestão era de que Schulz passasse a usar personagens negros como figurantes “positivos” – crianças normais, brincando, fazendo parte do pano de fundo da tira. E que isso “armaria o palco, de forma tranquila e discreta, para um personagem principal, caso se construa alicerces para a criação de tal protagonista.”
Não se sabe se Schulz recebeu cartas de outros pais negros com quem a Sra. Glickman tenha conversado. Mas sabe-se que Schulz parou para pensar…
Em 1º de julho de 1968, dois meses e meio após a primeira correspondência entre os dois, Schulz escreveu à senhora Glickman que havia tomado uma atitude. Pedia que ela prestasse atenção às tiras no final daquele mês. “Desenhei um episódio que creio que vai agradá-la”, ele conclui na carta.
Foi em 31 de julho de 1968 – no mesmo ano da morte de Martin Luther King Jr., mesmo ano de convulsões sociais nos EUA e mundo afora, a época em que um livro de tiras de Peanuts era vendido a cada minuto nos EUA, que O Natal do Charlie Brown e outras animações snoopyanas já eram tradição na tevê da família norte-americana – que Schulz apresentou Franklin, o primeiro personagem negro de Peanuts.
E que, apesar das sugestões de Kenneth Kelly, não seria só um figurante. Nas suas primeiras participações, ele contracena com Charlie Brown durante uma sequência de tiras na praia.
“Essa bola é sua?” é a primeira frase de Franklin, com uma bola de praia na mão.
“Opa! Sim! Muito obrigado!”, responde Charlie Brown.
“Eu estava nadando ali, aí ela veio boiando…”, diz o novo amigo. E segue: “Vi que você está fazendo um castelo de areia. Ficou meio torto.”
“É, acho que sim… lá de onde eu venho, não tenho fama de fazer as coisas direito”, diz Charlie Brown.
No dia seguinte, outra tira de Charlie e Franklin na praia. E Charles Schulz vai além do pedido:
“Você veio pra praia com toda a família, Franklin?”, pergunta Charlie Brown.
“Não, meu pai está no Vietnã”, responde o menino negro.
Era um momento de ebulição na crítica aberta à Guerra do Vietnã, um conflito armado violento em que os EUA se envolveram devido à Guerra Fria, e que se arrastava há mais de uma década. No ano anterior, 1967, a revista Time havia reportado que a proporção de soldados norte-americanos negros em combate no Vietnã, em relação aos brancos, era o dobro da proporção que se via na população dos EUA. Além disso, poucos negros ascendiam na carreira militar. E ser negro era motivo para escalação a missões mais perigosas.
Os EUA estavam jogando os negros na linha de tiro. Schulz não só trouxe um menino negro à tira, mas situou-o no centro de outra discussão acalorada no país, a guerra, que tinha vínculo direto com o racismo.
Não só isso. As tiras de estreia de Franklin retrataram algo mais elementar e triste. Na época, embora a segregação estivesse proibida, muitas praias dos Estados Unidos ainda separavam áreas para negros e áreas para brancos. Charlie Brown e Franklin, dois meninos de pele diferente, brincando juntos na areia, era, infelizmente, um choque para muitos norte-americanos.
As reações iam chegar. Schulz estava preparado, ou achou que estava.
(Continua na semana que vem.)