Estou de férias. Tentando, pelo menos. Os trabalhos que deviam ter acabado em janeiro invadiram fevereiro e meus dedinhos estão gritando por descanso.
Por conta disso, a newsletter da semana passada e a desta reproduzem um texto que eu já publiquei. Ele saiu em dois volumes da COLEÇÃO SNOOPY, CHARLIE BROWN & FRIENDS, da editora Planeta DeAgostini. Traduzi e escrevi prefácios de 56 dos 61 volumes da Coleção, lançada entre 2021 e 2022 (os outros cinco volumes tiveram tradução e textos de Alexandre Boide).
É um texto sobre a criação e os primeiros tempos de Franklin, o garoto negro de PEANUTS. Lembrei do texto porque vi a notícia sobre um especial animado com Franklin que estreia na Apple Plus no dia 16 (hoje!). Também porque gosto desse texto, modéstia à parte.
Volto na semana que vem com a estrutura de sempre da virapágina. Bom descanso a quem puder descansar. Juro que eu vou tentar.
Ao final da sequência de três tiras em que foi introduzido a Peanuts, Franklin é convidado por Charlie Brown para aparecer de novo quando puder, para os dois brincarem. “Quando sua mãe deixar”, diz o protagonista da tira.
Dois meses e pouco depois, a partir de 15 de outubro de 1968, ele começou a aparecer na vizinhança tradicional de Peanuts.
Franklin está procurando a casa de Charlie Brown e pede indicações a quem encontra pelo caminho. A primeira personagem com quem ele fala é Lucy, que está atendendo na sua banquinha de psiquiatra.
“Como vai o mercado da limonada?”, Franklin pergunta.
“Isto não é uma banquinha de limonada. É uma banca de psiquiatria”, ela responde.
“Você é médica de verdade?”, pergunta o novo garoto.
Lucy, de qualquer modo, indica o caminho certo para a casa de Charlie Brown. É lá que Franklin encontra… Snoopy, ocupado com sua fantasia de ás voador da primeira guerra. “Com licença, tenente…”, diz o garoto, antes de confirmar se aquela é mesmo a casa do menino careca com quem ele brincou na praia.
Snoopy pensa: “O QG deve estar preparando uma grande investida… são tantos os recrutas que eu não conheço…”
Antes de Franklin encontrar Charlie Brown, Linus vem avisá-lo de que o menino careca não está em casa. Linus e Franklin se apresentam e, como vão esperar pelo outro amigo, Linus engata uma de suas obsessões: “Gostaria de ouvir a palavra da Grande Abóbora?”
É na quarta tira que Charlie Brown e Franklin finalmente se encontram. O menino negro está indo embora. “Eu vou pra casa, Charlie Brown”, ele diz. “Essa vizinhança me deixou zureta. A menina da banquinha e o beagle aviador, tudo bem… mas esse negócio da ‘grande abóbora’… por favor!”
A chegada de Franklin à vizinhança lembra a de Patty Pimentinha, que também achou todo mundo muito estranho quando fez sua primeira vista em 1966. Coincidência ou não, ela e Franklin acabaram virando amigos literalmente próximos: o novo garoto vai morar no bairro vizinho, o mesmo de Patty, entra para o time de beisebol dela e os dois aparecem juntos na escola.
E é esta última parte que ia gerar mais problemas para Charles Schulz.
A tira de 26 de janeiro de 1970 é a primeira em que Franklin aparece na mesma escola de Patty Pimentinha. Ele senta-se na carteira em frente à garota. Só ela tem falas:
“Isso que eu chamo de resenha. Dessa vez eu me superei. Acertei o nome do autor, descrevi a trama e tudo mais… Até li o livro!”
Franklin faz cara de paisagem.
A tira inane levou a protestos. Como Charles Schulz comentou em entrevista a Michael Barrier em 1988, quase vinte anos depois, um editor se correspondeu para falar daquela cena em tom nada agradável: “Já temos bastante problema aqui no sul sem que você mostre as crianças juntas na tira.”
O editor era de algum estado do sul dos EUA de tendência conservadora. Embora a segregação escolar por cor houvesse sido proibida em todo o país em 1965, a segregação de fato ainda existia.
Na mesma entrevista, Schulz diz que já tinha sido criticado na primeira aparição de Franklin, quando o garoto negro brincava com Charlie Brown na praia. Mas o cartunista disse que não dava bola para esse tipo de ataque.
O Charles M. Schulz Museum guarda várias cartas de reações de apoio à introdução de Franklin. “No geral, a reação do público foi muito positiva”, disse Cesar Gallegos, em entrevista ao site KQED em 2015. Mas também há cartas de jornais avisando que deixariam de publicar Peanuts se a tira continuasse a apresentar Franklin.
É óbvio que Franklin continuou em Peanuts.
Na entrevista a Michael Barrier, Schulz fala de uma conversa com Larry Rutman, o presidente da United Features, syndicate que distribuía Peanuts. “Lembro de contar para o Larry sobre o Franklin naquela época… ele queria que eu mudasse [a abordagem], e passamos um bom tempo no telefone discutindo. Acabei dando um suspiro e falei: ‘Olha, Larry, vamos colocar da seguinte forma: Ou você publica do jeito que eu desenhei ou eu me demito. Que tal?’ O assunto acabou ali.”
As críticas não cessaram, porém. E, como o próprio Schulz havia previsto na sua primeira carta a Harriet Glickman, também vieram do outro lado: o autor de Peanuts foi acusado de paternalismo.
O Los Angeles Times foi procurar o bispo James P. Shannon, liderança negra que havia participado de marchas ao lado de Martin Luther King, para saber sua opinião a respeito de Franklin. O pároco questionou se o personagem negro seria “um ser humano crível, que tenha seus pontos fracos à mostra” e não um “garotinho negro perfeito”.
Peanuts, afinal, trata das nossas fraquezas, nossos defeitos, nossas neuroses, nossas incongruências. Ninguém é perfeito. Mesmo sendo crianças, Charlie Brown, Lucy, Linus e toda a turma são caracterizados sobretudo por aquilo que deixam a desejar. Qual seria o ponto fraco de Franklin?
Schulz nunca respondeu esta pergunta. Nem literalmente, nem nas tiras. Em artigo para o site Kotaku aos cinquenta anos de Franklin, Kevin Wong comentou como o garoto negro sempre foi um personagem que, apesar de revolucionário pela sua cor num oceano de personagens brancos, era perfeitinho demais para uma tira sobre ser imperfeito.
“[Franklin] não precisava ser um personagem politizado, mas precisava ser mais completo”, escreve Wong. “Assim como o resto do elenco, ele precisava ter suas excentricidades, ter falhas de personalidade. Afinal, identificar-se com o nervosismo de Charlie Brown e com a insegurança de Linus é uma coisa universal; os pontos fortes da tira transcendem os limites raciais.”
Franklin, porém, nunca teve histórias de destaque. Como comenta o articulista, sua principal função era conversar com Patty Pimentinha na escola – ou só ouvir, em silêncio.
Schulz comentou, de certo modo, o porquê de Franklin ter virado um personagem do banco de reservas, naquela entrevista de 1988 a Michael Barrier:
“Nunca fiz grande coisa com Franklin porque não lido com questões de raça. Não sou especialista em raça, não sei como é crescer como um garotinho negro e acho que você não devia desenhar o que você não entende direito, a não ser que você queira bagunçar o coreto ou queira ensinar alguma coisa. Eu não entrei nessa para ensinar; eu vim aqui para ser engraçado.”
Houve ocasiões, contudo, em que Schulz bagunçou o coreto. Como na tira de 6 de novembro de 1974, em que Franklin está treinando hóquei sobre um lago congelado e Patty Pimentinha chega pedindo o espaço para patinar.
“Eu estou ensaiando para um torneio de patinação artística!”, ela berra com ele.
“E eu?”, Franklin responde. “Eu estou treinando para ser um grande jogador de hóquei.”
Patty sai patinando para a esquerda e diz: “Quantos negros jogam na liga nacional de hóquei, Franklin?” A pergunta fica no ar.
Anos depois da publicação, Schulz recebeu a carta de um leitor questionando se o comentário não havia sido racista. O autor respondeu com indignação: “Há quinze anos, quando esta tira foi desenhada, creio que havia apenas um jogador negro na Liga Nacional de Hóquei. Ressaltar este fato torna a tira racista?”
Outra acusação circulou anos depois, agora quanto a um dos especiais animados de Peanuts: Charlie Brown e o Dia de Ação de Graças, de 1973. Em uma cena, os personagens principais estão sentados em volta de uma mesa para o jantar do tradicional feriado norte-americano. Franklin aparece com um dos lados da mesa só para si, desacompanhando, além de estar sentado em uma cadeira de armar em vez das cadeiras normais em que estão Charlie Brown, Sally, Patty Pimentinha, Linus e Snoopy.
A imagem circulou na internet por algum tempo como meme, com a legenda: “Às vezes o racismo é sutil”.
Não se sabe se Schulz chegou a receber essa crítica, mas sabe-se que ele nunca se manifestou a respeito da animação. Apesar de supervisionar os desenhos animados desde o roteiro, ele não tinha envolvimento direto nas imagens.
Estudioso de Peanuts, o escritor Nat Gertler comentou que Franklin acabou virando um figurante na tira – e sobretudo no material licenciado da tira, onde cumpre uma função basicamente representativa, estilo “temos um garotinho negro”.
“É mais fácil encontrá-lo numa cena com a turma em camisetas ou em embalagens de produtos Peanuts, para a escalação parecer mais includente”, Gertler escreveu na revista Hogan’s Alley. “A linha de bonecos de O Natal do Charlie Brown, recém-lançada, incluiu o primeiro bonequinho do Franklin já fabricado, mas é estranha quando se para pra pensar que Franklin não participou daquele especial, que foi ao ar anos antes de ele sequer aparecer na tira.”
Schulz comentou em entrevistas que havia pensado em introduzir personagens negros em Peanuts antes de Franklin. Mas o ímpeto inegável para isso acontecer – e que venceu sua relutância justificada – foram as cartas de Harriet Glickman e de Kenneth Kelly em 1968.
Glickman era mãe e dona de casa na época em que enviou a carta. Filha de imigrantes russos, ela nasceu em Sioux City, Iowa, e mudou-se várias vezes com a família até fixar-se na Califórnia, onde formou-se em Letras pela UCLA em 1948. Ela casou-se com Richard B. Glickman em 2018.
Na época em que escreveu aquela carta, ela tinha 42 anos de idade e havia largado a profissão de professora em Los Angeles para criar os três filhos. Voltou à docência logo em seguida, em 1970. Em 1982, foi trabalhar como diretora na Associação de Filantropia do Sul da Califórnia, da qual aposentou-se em 1999.
Em 2018, o Charles M. Schulz Museum organizou uma exposição para comemorar os 50 anos de Franklin, destacando o papel de Glickman. As cartas que ela trocou com Schulz foram expostas e a própria senhora, então com 91 anos, foi convidada para palestrar sobre sua contribuição.
Na descrição de Karen Johnson, diretora do Museu Schulz, a noite da palestra foi uma das mais marcantes de sua vida:
Harriet subiu no palco e falou de sua filosofia: que estamos todos juntos e devemos agir da maneira como nos considerarmos mais autênticos. Ela falou com voz forte, mas tranquila, com a empatia e o entendimento de que nem todos podem levantar a voz, mas, se você puder, que levante.
O auditório ficou em silêncio total. Ela foi ouvida, porque partiu da noção de empatia por todos, e ao mesmo tempo foi clara em dizer que devemos agir pelo Bem Maior da maneira que nos for mais apropriada.
Harriet Glickman faleceu em 27 de março de 2020.
Kenneth C. Kelly, por sua vez, havia nascido no Brooklyn de pais imigrantes jamaicanos, em 1928. O pai faleceu quando ele tinha dezoito meses. A mãe trabalhava como empregada doméstica e os irmãos mais velhos também já tinham emprego. Sozinho em casa, entediado, ele começou a mexer nos eletrodomésticos e montou uma bateria com 8 anos. Foi a curiosidade que o levou à escola técnica, a um cargo técnico na Marinha, à universidade e a empregos concorridos na área de tecnologia.
Como contado no volume anterior, Kelly teve que encarar o racismo em cada uma destas etapas da vida, trabalhando com colegas majoritariamente brancos que nem sempre o aceitaram. Até quando quis comprar casas com sua família nos subúrbios da Califórnia, nos anos 1950 e 1960, ele se viu rejeitado pela cor da pele. Não desistiu, conseguiu o que queria e ainda trouxe outras famílias negras para os subúrbios brancos.
Seu trabalho de pesquisa na área de antenas colaborou com a corrida espacial, possibilitou a TV via satélite e até a comunicação da Nasa com as sondas em Marte. Ele se aposentou com mais de 70 anos, plenamente reconhecido na área.
Sofrendo do Mal de Parkinson, Kelly faleceu em 27 de fevereiro de 2021, aos 92. Em um registro gravado pelo filho, diz: “Acho que sou um otimista lelé da cuca. Com certeza eu vejo o copo meio cheio. Conheci muita gente pessimista. Eu sempre achei que podia dar um jeito.”
Toda a história de Franklin começou com as cartas que Harriet Glickman e Kenneth Kelly escreveram a Charles Schulz, a partir de um momento de indignação e temor pelos rumos do mundo. Com as cartas, Glickman e Kelly transformaram Peanuts, transformaram as tiras de jornal e transformaram um pouquinho do mundo.
“Welcome Home, Franklin” já está disponível na Apple Plus (ou estará, segundo os anúncios - estou escrevendo esta newsletter com uma semana de antecedência!)
Um bônus na cartinha de hoje: na próxima quinta-feira, dia 22/2, quem estiver em Curitiba devia ir na Itiban (av. Silva Jardim, 845) conferir o lançamento, bate-papo e sessão de autógrafos de DAMASCO, de Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço - com mediação de Liber Paz. Gosto de ouvir esses três caras e gosto muito de DAMASCO. Mais do quadrinho do que da fruta.
Eu não estarei de corpo presente, mas estarei de corpo escrevente em um zine que os autores e a editora Brasa montaram para acompanhar a divulgação de DAMASCO. O zine reúne alguns desenhos inéditos - de Luiza Nasser, Brasiliano e do próprio Alexandre S. Lourenço - e as melhores resenhas sobre DAMASCO. Tem texto do Liber, de Luísa Monteiro, Milena Azevedo, Maria Clara Carneiro, Ramon Vitral, Rodrigo Scama, do próprio autor Lielson Zeni e uma minha.
Todas as resenhas são falsas. De “DAMASCOs que não existem”, segundo o briefing que o Lielson me enviou. Estou curioso para ler as outras. Segue a minha, logo depois da imagem:
RESENHA: Damasco, Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço
Editora Brasa, 2023, 208 páginas, R$ 109,90
A moda do desconstrucionismo histórico nos quadrinhos deixou de ser moda há trinta e muitos anos, pouco depois de Relojoeiros. Já entendemos que o povo da cueca por cima das calças é uma fantasia infantil, que nada daquilo funcionaria na nossa realidade adulta, que cueca se usa por baixo da calça etc. Anotado. Próxima ideia, por favor.
Mas parece que a editora Brasa ainda não foi avisada. É ela que agora, em pleno 2023, aposta em autores do quadrinho “udigrúdi” – os quadrinhos “contestadores” como os da editora Fantográfica, os “revolucionários”, que “desafiam as pré-concepções” – para recauchutar o combalido Homem-Damasco. Os figurinhas da vez atendem pelas alcunhas Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço.
E qual é a primeira grande ideia destes autores “disruptivos”, com a chancela da Bradante Brasa? Sessenta anos depois de Lins e Dikoto, temos um novo título – que não é “O Espetacular”, nem “O Poderoso”, nem “O Frutífero Homem-Damasco”. Agora, pasmem, ele não é nem “Homem”. Ele é apenas… “Damasco”.
Saulo Santos, nosso tradicional everyman, nem tem poderes. É um funcionário de escritório, mais uma vítima dessa “máquina de moer gente” na “selva urbana”. O ponto de virada na sua vida não é morder uma fruta com um agrotóxico experimental. Não. Desta vez, ele ouve falar, num papo dos colegas de firma, das pessoas que resolvem jogar a vida fora e desaparecer. E então... joga a vida fora e desaparece.
É claro que nossos autores Zeni e Lourenço não deixam isso claro ao leitor, que é obrigado a seguir as piruetas de linguagem e de diagramação que provavelmente foram boladas durante uma sessão regada a kombucha e cera para as pontas dos bigodes de guidão.
“Olha só que sacada metalinguisticodesconstrutiva, Alexandre: agora que ele não é nem ‘Homem-Damasco’, ele é mais… homem!”
“Alvíssaras, Lielson! Eu vou desviar totalmente da trama para acompanhar as peripécias desse gato. Só porque eu tenho um gato! Nhom, nhom, nhom, gatinho!”
Estênio Lins e Estevão Dikoto sacodem-se nos túmulos.
Não consegui desbravar mais páginas, caro leitor. Foi tudo que consegui acompanhar desta narrativa quadrinística trans-pós-pós-cis-moderna. Ao final do volume – sim, porque é um livro em capa dura, que você nem pode enrolar e botar no bolso – parece que há “explicações” de amigos dos autores sobre as referências bíblicas e antropológicas e balburdiológicas que inspiraram essa recauchutagem. A decência me impede de usar os adjetivos que eu gostaria para qualificar estes complementos. Evidentemente, não os li.
Cabe a nós, fiéis leitores do Homem-Damasco, buscar na prateleira um clássico de fato, como “Se Este for Meu Damasco”, “Nada Pode Deter o Huguenote” e “A Última Cachaça de Carver”. Quanto a esta “Damasco”, certifique-se de jogar no lixo não-reciclável como a fruta podre que é.
ÉRICO ASSIS, PhD
Prévia exclusiva do DAMASCO ZINE, em fase de produção.
A virapágina volta a seu formato tradicional na semana que vem. Obrigado a quem leu, a quem assina, a quem compartilha com os amigos. Boas páginas pra semana!
Outro texto excelente....e como fã de Peanuts adorei saber mais da história de Franklin
Mais um excelente texto, parabéns Érico.