046: TOMANDO ÁCIDO NO DESERTO COM UM CADERNO E LÁPIS NA MÃO
grant morrison | minha semana | capitalismo
Esses dias tuitei o link para um artigo que prometia explicar o processo de roteiro de Grant Morrison. Legendary Comic Book Creator Grant Morrison Breaks Down Their Writing Process.
Em seguida chegaram retuítes e respostas:
Processo de criação do Grant Morrison: MUITAS. DROGAS. ILÍCITAS. Tipo assim... MUITAS.
Deixa eu adivinhar: toma ácido no deserto com um caderno e lápis na mão
Outro retuíte era o gif de um careca com olhos injetados, dançando numa rave, fazendo caras e bocas.
Se a pessoa se desse ao trabalho de clicar, o artigo era do site Screen Rant - e bastante curto para um texto que prometia decompor o processo de trabalho de um escritor. Reproduzia trechos de uma newsletter recente de Morrison na qual ele havia compartilhado desenhos preliminares de Invisíveis n. 1, gibi que acabou desenhado pelo colaborador Steve Yeowell.
Morrison escreve que sempre esboça todas as páginas do quadrinho no lápis antes de escrever o roteiro, porque “nunca pediria para um artista desenhar uma coisa que eu mesmo não curtiria desenhar”. Depois desse rascunho, ele descreve o que desenhou em roteiro e entrega ao artista – o qual “raramente vê meus esboços antes de embarcar no trabalho de fazer as descrições voltarem a ser desenho!”
Embora pareça um jeito bem peculiar de escrever roteiro de HQ, o que se ouve dos profissionais da área é que não existe um método certo ou mais usual de escrever quadrinhos. Cada autor tem o seu e Morrison tem o dele. Pode ser, inclusive, que outros sigam um processo igual ou parecido ao do escocês.
Mas, voltando às reações ao meu tuíte - “MUITAS. DROGAS. ILÍCITAS”, “toma ácido no deserto” etc. – é interessante notar a reação instintiva que muita gente tem ao trabalho de Grant Morrison. É uma imaginação movida a lisergia. Criações que só viriam da cabeça de alguém que usa aditivo ilegal. Papo de chapado.
Dependendo da entrevista, Morrison não nega que já recorreu a um e outro estímulo químico, ilícito ou não, para escrever. Mas a questão é que, depois de 45 anos de carreira, trabalhando sem pausa na criação de conceitos e roteiros para todas as grandes editoras de quadrinhos de língua inglesa, com contatos e boa reputação na indústria audiovisual dos EUA, é difícil dizer que Grant Morrison trabalha apenas na base do que fuma, bebe, cheira, injeta, esfrega ou lambe.
Morrison é um profissional. Um profissional da criação. Uma coisa é você ter uma ideia, um dia, estimulada por um chá de cogumelo mágico. Outra coisa é ter que gerar ideias todos os dias na frente do computador ou em um bloquinho. E organizar essas ideias, transformar em projetos, conseguir transmitir a colaboradores, vender a editores. E repetir isso por 45 anos.
Morrison, dizem muitos, criou um mito em torno de si, uma suposta vida glamourosa de rockstar em torno da vida nada glamourosa de quadrinista. Os rockstars que admiramos – pelo menos os que passaram dos trinta – também são os que viram que os estimulantes só estimulam até ali e que o que conta é trabalhar. Um dia depois do outro.
Não há drogas no mundo que, com o perdão do trocadilho, façam uma carreira.
Grant Morrison, escocês de Glasgow, nasceu em 1960. Publicou o primeiro quadrinho aos 17 anos, no fim do colégio. Nunca fez universidade. Descobriu a cena punk, entrou em bandas e, enquanto tentava ser rockstar, cavou um e outro serviço nos quadrinhos do Reino Unido.
Alan Moore mudou a cabeça dos editores de quadrinhos dos Estados Unidos quanto ao talento britânico para HQ. Motivou executivos da DC Comics a viajarem à Europa querendo conhecer qualquer escritor de lá que tivesse uma proposta decente. Morrison, leitor voraz tanto de Batman, Superman e Liga da Justiça quanto dos gibis mais obscuros da DC, se apresentou.
Vieram suas versões de Homem-Animal (com Chas Truog e outros), Patrulha do Destino (com Richard Case e outros), a visão peculiar do universo de Batman em Asilo Arkham – o gibi mais falado e vendido do Batman no ano da Batmania (com Dave McKean). Em pouquíssimos anos, Morrison passou de músico sem hits a badalado escritor de quadrinhos. E dono de um castelo em Glasgow.
Veio Os Invisíveis (com Steve Yeowell, Phil Jimenez, Chris Weston e outros), um liquidificador de referências alimentado com super-heróis e todos os outros interesses do escritor-estrela. Projetos pessoais também definiram uma “estética Morrison”: Como Matar Seu Namorado (com Philip Bond), Flex Mentallo (com Frank Quitely). Ele ganhou um séquito. O nome de Morrison, por si só, vendia gibi.
Uma queda violenta no mercado de quadrinhos o transformou no funcionário comportado que escrevia séries campeãs de vendas: Liga da Justiça (com Howard Porter e outros), New X-Men (com Frank Quitely e outros), mais Batman (com Adam Kubert e outros) e até grandes sagas de verão como DC Um Milhão (com Val Semeiks) e Crise Final (com J.G. Jones e outros).
O boom de filmes baseados em quadrinhos o levou a sair dos personagens tradicionais para tentativas de emplacar – segundo o Morrison anos 2000, sempre de terno e adepto do corporativês – propriedades intelectuais. We3 (com Frank Quitely), Joe o Bárbaro (com Sean Murphy), Nameless (com Chris Burnham), Aniquilação (com Frazer Irving) foram apostas de olho no cinema. Entre estas e outras, a que deu certo foi Happy! (com Darick Robertson), que virou seriado de duas temporadas.
Aos 60 anos, Morrison declarou-se pessoa não-binária, dizendo que antes não existia vocabulário para o que ele foi desde criança. (Morrison também ressaltou que não se importa se o chamam por pronomes neutros ou masculinos, motivo pelo qual este texto – e este livro – identifica-o como escritor homem, tal como ele se apresentou na maior parte da carreira.) Depois de um período como consultor de filmes da DC, parece aposentado. Dispara a newsletter semanal para o séquito, publicou seu primeiro romance, Luda, e reduziu drasticamente a produção de quadrinhos.
Quarenta e cinco anos de carreira. Não é algo que se constrói tomando ácido no deserto com um caderno e lápis na mão.
O que distingue Morrison de outros roteiristas de quadrinhos é, quem sabe, sua disposição a fugir do padrão, a desconstruir as histórias típicas de super-herói, a inventar estruturas de roteiro que ainda não se testou, a se alimentar de referências incomuns na ração dos outros criativos. E ainda assim respeitar - quem sabe até ver como restrição criativamente produtiva - o gibizinho norte-americano de 20 e poucas páginas com grampo. Isso é trabalho.
Se de vez em quando ele coloca um papelzinho embaixo da língua para chegar lá, é uma questão secundária. O que importa é essa vontade de descobrir até onde ele consegue quebrar paradigmas dentro das estruturas. Isso também é trabalho.
Como qualquer operário criativo, Morrison faz isso sabendo que, nove em cada dez vezes, ele vai fracassar. Talvez em noventa e nove de cada cem páginas. O quadrinho não vai vender, ou não vai ser entendido, ele mesmo vai se enredar na teia que criou para si e o roteiro vai desabar. Isso também faz parte do trabalho. Você pode acertar no próximo. “Fracassar melhor”, como na frase famosa de Beckett.
Mas tem aquela vez em cada dez, ou em cada cem, que ele acerta. Aquelas vezes em que Morrison deixou uma ideia nova no mundo, essa ideia criou raízes na mente de quem leu e ficou lá para sempre, fincada no lobo onde você guarda os bons gibis.
Quando Superman criou um mundo em laboratório para descobrir como seria um mundo sem Superman – e a humanidade deste minimundo, sem qualquer estímulo, criou Superman. A ideia de que a ideia do super-homem sempre vai existir.
Os Invisíveis declaram que não querem destruir o inimigo. Eles querem criar o mundo em que “todo mundo tenha o mundo que quiser. Inclusive o inimigo.” Existe meta maior para um super-herói?
“Nós 3 bom. Cachorro bom. Casa agora.” Eu tive que segurar uma lágrima quando lembrei dessa.
Insira aqui a sua melhor memória de um quadrinho de Morrison.
São essas ideias – que sejam uma em cada mil – que constroem uma carreira. São essas ideias que criam séquitos. São essas ideias que levam gente a escrever livros sobre Grant Morrison e, você, a ler um livro sobre Morrison. Mas, para chegar naquela ideia, ele teve que produzir as outras mil. Isso é trabalho. Isso que são 45 anos de carreira.
Isso e muitas drogas ilícitas, talvez. Mas não só as drogas.
(Agradecimentos a
, que contribuiu com uma ideia central para este texto – também o cara que, em 2008, criou a conta @GrantMorrison no Twitter, deu de presente para o escritor e ganhou um “thank you”.)O texto acima foi escrito a convite dos organizadores de GRANT MORRISON E A HISTÓRIA, livro que está em campanha no Catarse neste momento. Será o texto de abertura.
Já colaborei com os organizadores - o coletivo Shazam, composto por Mario Marcello Neto, Felipe Radünz Krüger e Artur Lopes Filho - em outro livro, ALAN MOORE E A HISTÓRIA, que também pode ser adquirido na campanha. (A versão digital foi lançada no ano passado e dá para comprar agora mesmo.)
Assim como no caso de Moore, eles - agora acompanhados pelo Márcio dos Santos Rodrigues - me convidaram por causa de um texto que eu havia escrito para o Omelete. No caso, “60 momentos que só Grant Morrison daria aos quadrinhos”, que escrevi no sexagésimo aniversário do homem em 2020. Ainda curto o texto, mas não dava para só recauchutar para o livro. Transformei em outra coisa.
Em 2022, quando tentei montar Meu Cânone dos Quadrinhos, também no Omelete, descobri que Grant Morrison é meu escritor preferido por força dos números. Eu não sabia que ele ia ser citado tantas vezes. Foi impossível fazer uma lista dos quadrinhos que me marcaram e continuam me marcando sem Flex Mentallo, Grandes Astros: Superman, Homem-Animal, Patrulha do Destino e WE3 (com uma deixa pros New X-Men). Mais uma brechinha e eu enfiava Invisíveis.
GRANT MORRISON E A HISTÓRIA reúne dez textos que tratam de vários quadrinhos da carreira do escocês. Agradeço aos organizadores pelo convite, pela extrema paciência até eu entregar meu texto e por me autorizarem a republicar aqui. Compre o livro!
Vou viajar - já deveria estar viajando - durante este fim de semana, então a virapágina foi feita na pressa e com texto principal reaproveitado (é inédito, mas na minha cabeça foi reaproveitado).
Vou retomar meu pequeno diário de tradutor na próxima edição. Mas tenho que dizer três coisas:
As editoras estão se preparando para o final do ano, a todo vapor.
Estou felizão com tanto quadrinho bom e grande, além de infinitos infantis pra traduzir.
Esta semana acabou meu curso de Tradução de Histórias em Quadrinhos na LabPub. Semana que vem tem curso de Tradução de Livros na LabPub!
Obrigado a todos os envolvidos.
Os links abaixo são para trabalhos meus que foram lançados há pouco ou serão lançados em breve. Comprar pelos links da Amazon me rende uns caraminguás. Se puder, use os links. As datas podem mudar a qualquer momento e eu não tenho nada a ver com isso.
em julho
NICKY & VERA: O DISCRETO HERÓI DO HOLOCAUSTO E AS CRIANÇAS QUE ELE SALVOU, Peter Sís, companhia das letrinhas
KULL: A ERA CLÁSSICA VOL. 2, Roy Thomas, Don Glut, Gerry Conway, John Severin, Marie Severin e outros, panini
CHEGA PRA LÁ, Katrina Charman e Guilherme Karsten, harpercollins brasil
STRANGER THINGS: KAMCHATKA, Michael Moreci e Todor Hristov, panini
CONAN, O BÁRBARO 4, Jim Zub, Doug Braithwaite e outros, panini
LOBO OMNIBUS VOL. 1, Keith Giffen, Alan Grant, Val Semeiks, Martin Emond e outros, panini [traduzi um terço do omnibus]
MOONSHADOW, J.M. DeMatteis, Jon J. Muth, pipoca & nanquim [reimpressão]
em agosto
ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE, Bob Al-Greene (baseado no livro de Agatha Christie), harpercollins brasil
ANTES DISSO: COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI E PARA ONDE PODEMOS IR - A HISTÓRIA DA HUMANIDADE, Oliver Jeffers, harpercollins brasil
VOCÊ DORME COMO UM MONSTRO?, Guilherme Karsten, harpercollins brasil
CONAN, O BÁRBARO: A ERA CLÁSSICA VOL. 8, James Owsley, Val Semeiks, Geof Isherwood e outros, panini
STRANGER THINGS E DUNGEONS & DRAGONS, Jody Houser, Jim Zub, Diego Galindo e Msassyk, panini
LÚCIFER - EDIÇÃO DE LUXO VOL. 4, Mike Carey, Ryan Kelly, P. Craig Russell, Marc Hempel, Ronald Wimberly e outros, panini
ZDM - EDIÇÃO DE LUXO VOL. 2, Brian Wood, Kristian Donaldson, Nathan Fox, Riccardo Burchielli, Viktor Kalvachev, panini (traduzi metade das histórias e os extras)
PONTOS FRACOS, Adrian Tomine, nemo
em setembro
A ESPADA SELVAGEM DE CONAN 1, John Arcudi, Max von Fafner, Jim Zub, Patrick Zircher, Robert E. Howard, Roy Thomas, panini
SENHOR DAS MOSCAS, Aimée de Jongh (baseado no livro de William Golding), suma
O ABOMINÁVEL SR. SEABROOK, Joe Ollmann, quadrinhos na cia.
OS INVISÍVEIS EDIÇÃO DE LUXO vol. 2, Grant Morrison, Steve Yeowell, Steve Parkhouse e vários, panini
em outubro
MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO - LIVRO 2, Emil Ferris, quadrinhos na cia.
em novembro
GRANT MORRISON E A HISTÓRIA, de Mario Marcello Neto, Felipe Radünz Krüger, Artur Lopes Filho e Márcio dos Santos Rodrigues (orgs.), Dokan Editora - escrevi a introdução
Não é a primeira vez que eu traduzo livro de um autor que nasceu no Brasil e fala português perfeito - mas que escreveu o livro em inglês e tem lá seus motivos para não querer traduzir ele mesmo. Então, caiu pra mim. O problema, claro, é que esses são os poucos autores que conseguem ler e avaliar a tradução do próprio livro… Só espero que você goste,
!VOCÊ DORME COMO UM MONSTRO? sai pela HarperKids no mês que vem.
vem aí
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
SAPIENS VOL. 3, David Vandermeulen e Daniel Casanave, quadrinhos na cia.
COMIC BOOKS INCORPORATED, Shawna Kidman
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS e ATRAVÉS DO ESPELHO, Lewis Carroll
FEEDING GHOSTS, Tessa Hulls, quadrinhos na cia.
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
+ Adrian Tomine
+ Tom Gauld
+ Dan Clowes
+ Shaun Tan
+ Will Eisner
+ Gato Pete
+ Mike Birchall
+ Lore Olympus
+ Projeto Camalote
+ Projeto Tylenol
+ Projeto Fritas
+ Projeto Baleial
+ Conan
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
A virapágina é a newsletter de Érico Assis. Eu mesmo. Sou jornalista e tradutor, e escrevo profissionalmente sobre quadrinhos desde 2000. Publiquei dois livros: BALÕES DE PENSAMENTO 1 [amazon] e 2 [amazon]. Tem mais informações no meu website ericoassis.com.br.
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Parabéns pela sensibilidade na análise do trabalho de Grant Morrison, é fácil para muitos associar a imaginação dele com o uso de substâncias, mas como você bem destacou, a verdadeira arte vem do trabalho árduo, da disciplina e da capacidade de transformar ideias em algo concreto.
Minha melhor memória do Morrison provavelmente é Flex Mentallo #4. Por umas 25 páginas virei ficção.