091: O QUE OS HUMANOS FAZEM
joe sacco e emil ferris | dindim | minha semana | páginas viradas
Joe Sacco cansou.
(Eu poderia, como só um brasileiro poderia, escrever que Joe Sacco está de saco cheio. Mas o tom não é esse. Desculpe.)
Joe Sacco cansou. Em entrevista ao Comics Journal publicada este mês, Sacco disse que trabalhou em seu último livro - THE ONCE AND FUTURE RIOT, sobre revoltas populares e linchamentos em Uttar Pradesh, na Índia - tendo na cabeça que seria seu último trabalho de jornalismo em quadrinhos.
Por quê?, perguntou o entrevistador.
“Porque o mundo é bruto. Depois de um tempo no jornalismo, isso acaba te afetando. Acho que, nos primeiros vinte anos, eu dava um jeito de lidar. Mas, conforme o tempo passa, você entra mais a fundo no que está rolando no mundo, no jeito como os seres humanos se comportam em certas situações. São temas muito dignos. Nunca vou dizer que não são. Mas, da minha parte, cheguei na minha cota…”
E termina a resposta com a frase que me pegou:
“Anda difícil desenhar o que os humanos fazem com outros humanos.”
Sacco completa 65 anos em outubro e merece a aposentadoria como qualquer ser humano. É jornalista desde a adolescência no jornalzinho do colégio. fez faculdade de jornalismo, se desencantou com o jornalismo diário, resolveu fazer quadrinhos - fez até jornalismo sobre quadrinhos, trabalhando no mesmo Comics Journal que hoje o entrevista. Encontrou-se de verdade numa mistura das duas coisas: o jornalismo em quadrinhos. Foi a partir de PALESTINA, de 1993.
E não foi qualquer tipo de jornalismo, mas a cobertura de zonas de guerra. Do sofrimento humano inexplicável literalmente no fogo cruzado de forças políticas gigantes. Não imagino a cabeça fria para entrevistar a última sobrevivente de uma família em Gaza nem a cabeça ajustada para explicar a geopolítica por trás da criança mutilada. Sacco tem essa cabeça.
(Ou tinha.)
Nos vinte anos a que ele se refere naquele trecho da entrevista, Sacco foi o grande nome do jornalismo em quadrinhos, sobretudo pelos trabalhos sobre guerras. ÁREA DE SEGURANÇA GORAZDE foi outra reportagem densa, agora sobre a guerra sanguinária nos Balcãs nos anos 1990. O mesmo conflito rendeu UMA HISTÓRIA DE SARAJEVO. Ele pegou carona com soldados dos EUA no Iraque em 2006 para uma das matérias de REPORTAGENS, livro que também reúne coberturas na Índia, na Chechênia e em retornos à Palestina.
Seus trabalhos grandes mais recentes foram de pesquisa histórica: NOTAS SOBRE GAZA foca em um massacre dos anos 1950, enquanto PAGAR A TERRA investiga mais de um século de opressão colonial aos indígenas do Canadá. Ainda não li o livro sobre a Índia, que pode ser a última empreitada desse porte. Sai em outubro.
Naquela entrevista, depois de dizer que chegou na sua cota, Sacco diz que não vai se afastar dos assuntos pelos quais é conhecido.
“…talvez eu queira abordar os mesmos assuntos, mas de um jeito diferente, sem me ater tanto ao específico. Talvez de um jeito mais recuado, pensando aquilo de um jeito mais filosófico, mais geral. É isso que eu quero focar. Meus próximos trabalhos - mesmo que entrem pela sátira, quem sabe até pelo humor - na minha cabeça eles são sérios e dão continuidade ao projeto da minha vida. Mas de outro jeito. De um jeito que eu dê conta.”
GUERRA EM GAZA, seu quadrinho curto que sai no Brasil em breve, já é uma produção que vai nesse sentido. Trata desse capítulo mais recente de tensão entre Israel e Palestina, o que começou em 2023, mas não é uma reportagem daquela a que estamos acostumados a ver nos quadrinhos de Sacco: é ele de sua prancheta, nos Estados Unidos, comentando seu terror com tudo que se passa naquele outro canto do mundo em que ele esteve várias vezes e sobre o qual já produziu tanto.
Mas um canto ao qual, aparentemente, ele não se dispõe a voltar e sujar as botas pra conversar com gente desesperada, para entrevistar autoridades e ver as crianças.
É isso que ele não aguenta mais. E é compreensível.
O trabalho de Emil Ferris tem pouco a ver com o de Joe Sacco, fora os dois fazerem quadrinhos. Ela é a autora de MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO. Acompanho Ferris nas redes e tenho visto sua indignação, preocupação, desespero diante da situação palestina. Na última quarta-feira, ela postou um vídeo de apelo a quem, tal como ela, mora nos Estados Unidos. Traduzi um trecho abaixo:
Olá, amigos. Quero falar com vocês agora sobre o que pretendo fazer amanhã e todos os dias daqui em diante. Pretendo fazer um cartaz e ficar na rua. O cartaz pode dizer apenas “Alimentem Gaza” ou “Libertem Gaza”.
Estão fazendo o povo de Gaza passar fome. Até nossa mídia tradicional informa que 14 mil crianças correm o risco de morrer de fome nas próximas 48 horas. Então, nas próximas 48 horas, vou dedicar uma parte do meu tempo - pode ser meia hora, pode ser uma hora, pode ser três horas, pode ser quinze minutos - a [mostrar] um cartaz.
Porque acredito que, se toda pessoa que ouvir isso, toda pessoa com consciência fizer isso, será impossível ignorar o fato de que os Estados Unidos da América não são feitos só de maníacos homicidas. Que alguns, aqui, não apoiamos o genocídio
(…)
É isso que eu quero de vocês. Fiquem na rua, nem que seja por 10 minutos. Se todo mundo que reconhece que isto é um genocídio fizer assim, passamos uma mensagem. Porque será impossível dirigir duas quadras em qualquer cidade dos Estados Unidos, de qualquer cidadezinha, sem ver gente com um cartaz.
Um cartaz que diz, basicamente: “Não façam isso no meu nome”.
E ao povo de Gaza, peço desculpas do fundo do meu coração, pois meu país ajudou e apoiou o assassinato do seu povo. Isso é errado. Não podia ser permitido.
Israel bloqueava o acesso da ajuda humanitária a Gaza há 11 semanas. Liberou ontem, uma fração do necessário. A última notícia, da Reuters, é de que 29 crianças e idosos morreram de fome nos últimos dias.
Hoje, Ferris postou um desenho, de sua autoria, de uma das crianças que faleceu recentemente em Gaza.
Assim como Ferris ataca o próprio país, GUERRA EM GAZA, o trabalho recente de Sacco, vai com força na crítica a seus Estados Unidos pela cumplicidade no que acontece com a Palestina nesse momento. Um dos trechos conta, didaticamente, como ele e outros americanos se veem impotentes ao ver seus impostos virarem bombas que explodem hospitais do outro lado do planeta.
Dá para entender por que Sacco cansou.
E aquela frase, de novo:
“Anda difícil desenhar o que os humanos fazem com outros humanos.”
Os links abaixo são de trabalhos meus que foram lançados há pouco tempo ou que serão lançados em breve. Comprar pelos links da Amazon me rende uns caraminguás. Se puder, use os links. As datas podem mudar a qualquer momento e eu não tenho nada a ver com isso.
agora no Catarse:
ÔNIBUS 2 + O ESPELHO DOS SONHOS: dois trabalhos de Paul Kirchner, um deles em lançamento simultâneo Europa/Brasil, um exclusivo do Brasil. Dá para comprar separado, junto, em combo com o primeiro ÔNIBUS. E tem um brinde exclusivo para quem apoia no Catarse: o MICRO-ÔNIBUS. Traduzi tudo para a Risco.
A campanha vai até 7/7.
em maio
FICCIONÁRIO, Horacio Altuna, risco
HAPPY ENDINGS, Lucie Bryon, risco
O UNIVERSO DE SANDMAN: GAROTOS DETETIVES MORTOS, Pornsak Pichetshote, Jeff Stokely, Craif Taillefer, Javier Rodríguez, Miquel Muerto, panini
CONAN, O BÁRBARO 8, Jim Zub e Doug Braithwaite, panini
CONAN, O BÁRBARO: A ERA CLÁSSICA VOL. 9, Val Semeiks, Michael Higgins, Ron Lim e outros, panini
OS INVISÍVEIS: EDIÇÃO DE LUXO VOL. 4, Grant Morrison e um monte de gente, panini (tradução revisada e extras inéditos)
SONIC VOL. 15: GUERRA URBANA, Evan Stanley, Adam Bryce Thomas, Natalie Haines, geektopia
STRANGER THINGS: CONTOS DE HAWKINS, Jody Houser, Caio Filipe, Sunando C, Giorgia Gio Sposito, Nil Vendrell, Dan Jackson, Nate Piekos, panini
Uma das tiras inéditas de ÔNIBUS, de Paul Kirchner, que está em ÔNIBUS 2. Apoie no Catarse.
em junho
SAPIENS VOL. 3: OS MESTRES DA HISTÓRIA, Yuval Harari, David Vandermeulen e Daniel Casanave, quadrinhos na cia.
IRMÃOS MENÉNDEZ: SANGUE DE FAMÍLIA, Robert Rand, darkside
MONSTROS DA UNIVERSAL: DRÁCULA VIVE, James Tynion IV, Martin Simmonds, darkside
MONSTROS DA UNIVERSAL: O MONSTRO DA LAGOA NEGRA, Ram V, Dan Watters, Matthew Roberts, Trish Mulvihill, darkside
MONSTROS DA UNIVERSAL: FRANKENSTEIN, Michael Walsh, Toni Marie Griffin, darkside
em julho
GUERRA EM GAZA, Joe Sacco, quadrinhos na cia.
ainda este ano
ESTÁ TUDO BEM VOL. 2, Mike Birchall, suma
GIBI S.A., Shawna Kidman, veneta
TOTEM, Laura Pérez, nversos
LIMBO, Deb JJ Lee, nversos
WILL EISNER: UMA BIOGRAFIA EM QUADRINHOS, Stephen Weiner e Dan Mazur
vem aí
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
FEEDING GHOSTS (a vencedora do Pulitzer!), Tessa Hulls, quadrinhos na cia.
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS e ATRAVÉS DO ESPELHO, Lewis Carroll
+ Adrian Tomine, Dan Clowes, Shaun Tan, Will Eisner, Rachel Pollack
+ Gato Pete, Lore Olympus, Conan, Kull, Primeiro Gato no Espaço
etc. etc. etc.
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
Não falei da minha semana na última virapágina. Então, como foram as duas últimas semanas:
Entreguei as traduções de ÔNIBUS 2 e de MICRO-ÔNIBUS. O volume 2 da coleção de tiras do Paul Kirchner, na edição da Risco, vai reunir o que os gringos lançaram/estão lançando como THE BUS 2 e 3. E acho que é o ponto final do Kirchner no coletivo urbano surrealista. MICRO-ÔNIBUS é um brinde de 16 páginas que ele inventou pros gringos e a Risco vai reproduzir aqui - mal precisou de tradução. Mais detalhes no Catarse.
Estou fixado em terminar o PROJETO DESAMOR. Já traduzi todo o texto, o que chamo de primeira fase. Estou nas revisões.
É um livro acadêmico, pesadamente acadêmico, e a revisão inclui pesquisar trechos de outros autores para respeitar traduções consagradas. Estou com uma pasta gigante de referências que inclui livros de Anthony Giddens, Niklas Luhmann, Naomi Wolf, David Harvey, Deleuze, Foucault, Sêneca e Durkheim.
Como as pessoas pesquisavam isso antes da internet? Passavam um dia na biblioteca? E até achar a biblioteca que tivesse tudo isso?
Terminei a primeira fase de PROJETO PORVIR, a tradução doida do ano. Estou só esperando umas decisões do editor para seguir com as revisões. Já falei que é a tradução doida do ano?
Fui convidado a conversar sobre tradução com o clube de leitura de uma empresa de tecnologia. Eu nunca tinha feito isso, e acho que o resultado foi legal. Parece que o pessoal gostou também.
Gravei dois podcasts. O Lasercast está prometido para a semana que vem.
Comecei duas traduções: o PROJETO VALÃO (um quadrinho europeu) e o PROJETO GOLFINHO2 (um omnibus). Na semana que vem, começo o PROJETO AGATHA11 (contos!).
No 2Quadrinhos, colaborei em dois 2QNews. Um com bastante tempo para o Hickman reclamar da época em X-Men:
E outro que ficou marcado pelo Efeito Eternauta:
Também montei dois Lançamentos da Semana:
E a semana acabou.
Lee Gatlin, aqui.
Raphael Salimena, aqui.
Um dos originais de Adrian Tomine que estava à venda na exposição solo que está acontecendo em Paris. Traduzi essa página em A SOLIDÃO DE UM QUADRINHO SEM FIM. (Também traduzi GHOST WORLD, rá.)
Adoro a cena. A página já foi reservada (custava R$ 14 mil).
O homem é um animal utópico, porque em todas as épocas e lugares acreditou em um além, em algo que não pode nem provar que existe, algo pelo qual ele quase chega a se matar.
É uma constante em todas as culturas, é uma necessidade humana. E quando você vê uma coisa dessas, começa a entender certas coisas como os símbolos. Uma bandeira, por exemplo.
O que é uma bandeira senão um trapo cagado? São coisas que não têm nada a ver com a racionalidade e que serviram para aglutinar multidões.
De PEPE MUJICA Y LAS FLORES DE LA GUERRILLA, de Matías Castro e Leo Trinidad. Tchau, Mujica.
Mikel Janín, capa de DETECTIVE COMICS 1100, aqui.
Você tem que viver bem, com gente que te ama, para se sentir forte e ter força para olhar tudo que tá fodido no mundo e exigir que seja melhor.
Você tem que fazer tudo que puder, sempre. Você tem que sentir. A vida é horrível e é linda, e você precisa continuar sentindo e insistindo, sempre no rumo do que é não dá para negar que é bom e que é certo.
Com convicção. Firme. Que seja impossível que te ignorem. Fortalecido pelo amor e insistindo sempre. Não pelo que é confortável, mas pelo que é melhor.
Em THE GULF, de Adam de Souza. [amazon]
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E já ouviu falar dos sorteios para quem colabora com uma assinatura paga? Todo início de mês, uma tradução minha vai para os colaboradores! Teve sorteios na edição 80, na edição 84 e na ediçaõ 88.
E mais: com a parceria todavia + virapágina, você pode ganhar um quadrinho da Todavia todo fim de mês. Mais detalhes nessa edição extra.
Na próxima edição tem o resultado do sorteio de DEMENTIA 21 vol. 1 e 2:
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Meu nome é Érico Assis. Sou jornalista e tradutor. Escrevo profissionalmente sobre quadrinhos desde 2000, traduzo profissionalmente desde 2009. Sou um dos criadores do podcast Notas dos Tradutores, colaboro com o canal de YouTube 2Quadrinhos e com o programa Brasil em Quadrinhos do Ministério das Relações Exteriores. Dou cursos de tradução na LabPub. E escrevo esta newsletter.
Publiquei dois livros: BALÕES DE PENSAMENTO 1 e 2, disponíveis em formato digital e físico na Amazon.
Tem mais informações no meu website ericoassis.com.br.
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E que você vire ótimas páginas até a semana que vem.
sou doide pra ler as coisas deles