Saiu uma entrevista com Gabriel Bá no Off Panel, podcast de David Harper, no início da semana. Bom papo. Gostei especialmente de um trecho.
Harper perguntou ao Bá sobre como é trabalhar com Gerard Way nos roteiros de UMBRELLA ACADEMY, no sentido de que Way tem formação artística e sabe desenhar.
Bá, aí pelo minuto 34 do podcast:
Sempre dá pra saber, quando você lê um roteiro, se o roteiro é de alguém que saberia desenhar aquilo ali ou se é o roteiro de alguém que só escreve. Escrever não é fácil, de modo algum, mas dá pra saber quando é um roteiro de escritor e quando é um roteiro de quem escreve e desenha. É diferente. As pistas visuais e o ritmo da história, o compasso da história é diferente.
Bá segue falando sobre como ele e Gerard Way se acertam. Não só porque os dois sabem desenhar e porque os dois colaboram no roteiro, mas também porque cresceram lendo os mesmos gibis de hominho e estão trabalhando em UMBRELLA ACADEMY há quase vinte anos - incluindo três volumes do gibi e quatro temporadas de um seriado para TV no qual eram produtores. O motivo da entrevista foi o quarto volume de UMBRELLA em HQ, chamado PLAN B, que começa este mês.
Em seguida chega no outro trecho legal. David Harper volta ao assunto: qual é a diferença entre um roteiro de escritor e um roteiro de quem sabe escrever e desenhar? “Seria no sentido de como você escreveria pra você mesmo [desenhar] versus como você escreveria pra outra pessoa [desenhar] ou é outra coisa?”
É outra coisa, responde Gabriel Bá:
Se você observar, por exemplo, a grade de nove quadros — as páginas que obedecem uma grade de nove quadros. As que obrigam o desenho ou a página a entrar num ritmo de nove quadros, todos do mesmo tamanho.
Nisso você já elimina um dos elementos que a arte tem para expressar tempo ou importância na narrativa. E os roteiristas adoram grades porque, com elas, eles podem controlar o ritmo da narrativa, de certa forma. E isso acaba limitando o artista àquelas grades. E nem todo artista, nem toda história, funciona bem na grade.
Acho que a culpa é tanto do Alan Moore quanto do Frank Miller, porque O CAVALEIRO DAS TREVAS é em [ou segue uma grade de] quatro por quatro [quadros].
Mas Alan Moore, né, é um roteirista, é o roteirista dos roteiristas. E pelo que ouvi, ele escreve tudo o que quer que apareça em cada quadro. E isso é informativo para o artista, mas ao mesmo tempo acaba sendo limitante.
Trabalhar com uma grade não é o sonho. Pelo menos não pra mim.
Às vezes, você encontra quadrinhos que acontecem apenas nos diálogos. Os diálogos são muito importantes. SANDMAN, por exemplo. O Neil [Gaiman] é escritor, e a magia dele está nas palavras, no jeito como ele escreve, como os personagens falam, como ele narra. A arte não tem tanta importância. SANDMAN é a grande prova. Ele teve vários artistas e isso não mudou a essência da história. A história está nas palavras. E dá pra perceber isso na forma como a história é contada.
Dá pra perceber já no roteiro se ele foi escrito por um roteirista-escritor ou se foi feito por um quadrinista que dá espaço para a arte também contar a história. Tem mais momentos de silêncio e quadros maiores.
E, visualmente, fica mais dinâmico. Acho que uma boa colaboração nesse sentido é 100 BALAS, porque o Brian [Azzarello] é um ótimo roteirista — é um roteirista-escritor — mas ele não limita o artista. Ele não impõe grades nem nada. A história dele está nos diálogos que ele escreve. Isso é ótimo.
Do outro lado, o Eduardo [Risso] é incrível. E o que ele traz para a história não está no roteiro. O jeito como ele decide compor a página, posicionar a “câmera”, é isso que ele acrescenta à história. Acho que [100 BALAS] é uma grande colaboração entre um roteirista e um artista.
Gostei do trecho porque adoro essas conversas sobre estrutura narrativa nos quadrinhos. Mais especificamente sobre essas engrenagens ocultas ou bastidores de como se estrutura uma página de quadrinhos para conseguir tal e tal efeito. E ainda mais especificamente quando falam da tal grade de nove quadros.
Como Bá comentou, é um recurso que ficou famoso por causa de WATCHMEN, de Alan Moore, Dave Gibbons e John Higgins, de 1986:
Li WATCHMEN pela primeira vez acompanhada das Watchmen Annotations que circulavam pela internet. As Annotations tinham uma explicação analítica do assunto: quando a página de quadrinhos usa a grade de nove quadros, o que acontece não é só que todos os quadros ficam exatamente com o mesmo tamanho. Todos os quadros também ficam praticamente na mesma proporção da página. É uma estabilidade redobrada.
Estamos falando aqui da página no típico formato americano, de 17 x 26 cm. Não é exatamente a proporção áurea (1 x 1,618), mas é quase (1 x 1,529). Descontando margens e entrequadros, os nove quadros ficam, cada um, ainda mais perto da proporção áurea exata - na página de WATCHMEN acima, a proporção de cada um deles é de 1 x 1,585. Ainda mais estabilidade. Mais harmonia.
Por conta disso, as Watchmen Annotations chamavam a grade de nove quadros de ponto morto da narrativa em quadrinhos. “Ponto morto”, para quem nunca dirigiu um carro com marcha, é quando o carro não está engatado em marcha nenhuma. Você pode afundar o pé no acelerador e ele não vai se mexer.
O que não significa que um quadrinho com grade de nove quadros não se mexe ou não tem dinâmica. Tem dinâmica de sobra no desenho, nas cores, nas mudanças de ângulo. A única coisa que acontece é que a grade não colabora com essa dinâmica, nem para dizer o que é mais importante na narrativa, nem para dar sugestão de tempo. A grade, por si só, é monótona.
Diferente de um quadrinho tradicional. Veja a variação de layout nessa sequência de UMBRELLA ACADEMY: DALLAS, de Gerard Way, Gabriel Bá, Dave Stewart e Nate Piekos. Os layouts são de Bá:
Olha só, tem até uma página com grade de nove quadros! É justamente para dar uma pausa - uma trégua, uma calmaria - na ação. Tanto em relação à ação que veio antes quanto à ação que virá depois:
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