049: ZANZANDO
roaming | modalidades visuais de escrever | minha semana | capitalismo | páginas viradas
FLANANDO.
PERAMBULANDO.
ZANZANDO.
BORBOLETEANDO.
Ou: MARIPOSAR. MARIPOSEAR.
Ou: FORA DE ÁREA.
Ou ainda: ITINERANTES.
São essas palavras que eu anotei na primeira página da tradução de ROAMING, de Mariko e Jillian Tamaki (as duas são primas). Estava bolando o título em português.
As opções não surgiram todas de uma vez só. Uma ou duas devem ter saído assim que comecei a traduzir. Outras, eu anotei durante os oito dias que trabalhei na primeira e segunda versão do texto, em agosto do ano passado. Cada vez que abria o arquivo, forçava a cabeça para dar uma opção nova, conferia um dicionário diferente, anotava ali.
O nome que o quadrinho ganhou no Brasil? Não ganhou. Ficou com o original: ROAMING.
ROAMING é a história de três garotas do Canadá que vão passar cinco dias em Nova York durante o recesso da faculdade. Duas, Dani e Zoe, se conhecem desde criança. A terceira, Fiona, é uma amiga nova que a Dani fez na faculdade e resolveu colar na viagem.
Elas estão entre os dezoito, vinte anos, por aí. A viagem é uma coleção de tensões para elas se mostrarem na fronteira entre adolescentes e adultas. Também é para comer pizza, visitar museu, ir na loja da M&M’s, ver os esquilos do Central Park, descobrir sua identidade sexual, beber demais, vomitar no táxi etc.
Roam, o verbo raiz de roaming, significa “deslocar-se ou viajar, especialmente sem uma ideia exata do que você vai fazer” (Cambridge) ou “deslocar-se sem rumo ou assistematicamente, sobretudo em um espaço amplo” (Oxford).
Ou seja: vagar, perambular, flanar, zanzar.
É o que as meninas estão fazendo em Nova York: perambulando, flanando, zanzando.
“Vagar”, não, para nem passar perto de “vagabundear” ou “vagabundas”.
Eu ia curtir um quadrinho chamado ZANZANDO. Ou ZANZAR.
Mas tem outro sentido de ROAMING, que é o do celular fora de área. Zoe é a personagem que está sempre preocupada com as taxas por usar o celular em país estrangeiro.
A história se passa em 2009, quando, se não me engano, ainda existia cobrança de roaming quando você usava o celular em qualquer viagem, até dentro do país. Era assim nas operadoras do Brasil, não? Não sei se era assim nas operadoras canadenses, nem se hoje é diferente. Em ROAMING, o quadrinho, é uma preocupação da Zoe: se ela ligar o celular, a contar vai dar “um milhão de dólares” (canadenses, mas mesmo assim).
Sacou os vários sentidos do título? Roaming do celular fora de área; roaming de zanzar pela cidade, como elas zanzando por Nova York; roaming de você estar meio sem rumo nessa transição de adolescente para adulta.
ZANZAR ou ZANZANDO se encaixa nos dois últimos sentidos.
FORA DE ÁREA, forçando um pouco, se encaixa nos três: é o celular fora de área; as meninas fora de casa, em cidade estrangeira; e perdidas, sem lugar certo, nessa idade de transição. Fecha, né?
Tem as borboletas. Tem uma borboleta na capa, tem mais duas na quarta capa, tem a visita ao Museu de História Natural de Nova York onde elas veem borboletas e esta sequência acima com as borboletas, uma das mais bonitas do quadrinho. No capítulo “Dia 3”, que começa com a ilustração de um borboletão.
Borboletas. Metamorfoses. Adolescentes virando adultas.
E palavras que o inglês não tem, como borboletear. Segundo o Houaiss:
1 int. sair da crisálida, passando de pupa ao estado adulto
2 int. dar voos curtos, sem direção certa, como borboleta; voejar, esvoaçar
3 int.; p.ana. andar a esmo; vaguear
4 int.; fig. não fixar a atenção em nada; devanear, entressonhar
As quatro acepções têm muito a ver com o as meninas e a trama.
Nada a ver com celular fora de área, porém. Uma perda na tradução. Por outro lado: tem borboletas no quadrinho. Um ganho na tradução.
Mariposar (ou mariposear) é quase a mesma coisa, segundo o Houaiss:
1 int. vaguear, como o fazem de um ponto a outro as mariposas
2 int. perder-se em devaneios; devanear, fantasiar
Tem algumas mariposas no quadrinho. Mas MARIPOSAR, MARIPOSEAR ou MARIPOSANDO não soam tão legais.
BORBOLETEAR, sim.
Última opção: ITINERANTES. É uma tradução de roaming, inclusive no sentido do celular fora de área. Elas estão viajando, itinerando. Forçando um pouco, pega o sentido da transição adolescência/adultas. Não me soa tão legal quanto as outras opções, mas é uma opção.
A ESMO? Muito formal. FLANAR também. Às vezes dá pra usar palavra com cheiro de naftalina, mas não em uma graphic novel YA ou quase YA.
Na verdade, minha opção preferida é ZANZANDO. Mesmo que não tenha a ver com o celular fora de área. Meu ouvido gosta. Tem a ver com as meninas zanzarem por Nova York, estarem naquela fase de zanzar para se decidir na vida e tem a ver com o próprio movimento que as Tamaki dão pras páginas - você passeia/zanza junto com a Zoe, a Dani e a Fiona.
Não lembro do papo sobre o título com a
, que colaborou comigo na tradução. Convidei a Ilustralu para traduzirmos juntos porque já tínhamos colaborado em outra tradução - LADRAS, de Lucie Bryon -, e ela é ótima em diálogos e gírias e meninas. ROAMING é puro diálogos, gírias (de 2009) e meninas.(Também porque a Luiza é uma celebridade, e uma celebridade assinando a tradução tem seu peso.)
Talvez a gente nem tenha conversado sobre isso porque a editora já tinha me dado um veredito: ROAMING, edição brasileira, seria ROAMING. O principal motivo é que mexer naquelas letras tão bonitas da Jillian Tamaki, tão integradas com tudo, seria não só difícil. Seria um sacrilégio.
(Não só na capa. Internamente também.)
Então ficou ROAMING. Um dia eu uso ZANZANDO em outro título.
A entrega anual dos Prêmios Eisner, o mais famoso dos quadrinhos, aconteceu na última sexta-feira, dia 26. Mariko Tamaki levou Melhor Roteirista, Jillian Tamaki levou Melhor Artista/Arte-Finalista e, o último prêmio da noite, Melhor Graphic Novel Inédita, ficou com ROAMING.
É um ponto importante na trajetória da graphic novel, que tinha sido anunciada como O Grande Lançamento de 2023… dois anos antes. Eu cheguei a comentar na Enquanto Isso, em 2021, como era incomum uma editora anunciar quadrinhos com tanta antecedência, como filmes muito esperados. Mas isso mostra a importância de Mariko e Jillian Tamaki: prepare-se desde já para mais um baita quadrinho.
E é um baita quadrinho. Eu não canso de dizer que duzentos anos de quadrinho existiram para chegar no que as Tamaki fazem em ROAMING.
Tem Adrian Tomine em ROAMING. Tem Manuele Fior em ROAMING. Tem CLAMP. Tem Chris Ware. Tem Emil Ferris. Tem os degraus que as próprias Tamaki subiram em SKIM e em AQUELE VERÃO (que eu resenhei aqui). Em ROAMING, parece que elas saíram correndo escada acima. Tem até LITTLE NEMO em ROAMING.
Ainda tem chance de elas serem indicadas a troféus no Festival d’Angoulême, considerado um prêmio mais sério. A edição francesa de ROAMING saiu no início deste ano, então tecnicamente ela pode concorrer. Só fico com medo que ela seja prejudicada, com todo respeito à tradutora francesa e à editora francesa, por esse título tão tiozão:
Que me deixou, inclusive, contente por eu não ter insistido por um título brasileiro para ROAMING.
Vai que ZANZANDO causasse outro incidente como o de REPETECO…
ROAMING saiu pela editora nVersos em abril de 2024, com tradução minha e da Ilustralu.
“Nenhum de nós entende HQ como uma mídia consolidada… Vemos os quadrinhos como um lugar onde as modalides visuais de escrever podem se reinventar, um lugar onde elas podem se mesclar com outras mídias.”
A frase é de Jean-Philippe Bretin, numa declaração a essa matéria do Comics Journal sobre a exposição de quadrinhos que está acontecendo no Centre Georges Pompidou, Paris. (A mesma da qual eu publiquei fotos na virapágina da semana passada.) Bretin faz parte de um coletivo chamado Lagon, que tem uma exposição meio “futuro dos quadrinhos” acoplada à exposição maior do Pompidou, a BANDE DESSINÉE, 1964-2024.
Não me interessei tanto pelo material da Lagon, mas essas aspas me deixaram pensando. Ainda quero destrinchar mais, mas parece que finalmente entrou na minha cabeça a ideia dos quadrinhos não como uma coisa fechada - “isso é quadrinho, isso não é” - mas como uma área, como se diz por aí, com fronteiras porosas. Melhor ainda: uma área (ou mídia, ou formato, o que for) cheia de ganchinhos, onde outras coisas podem se enganchar e virar quadrinho junto. Ou virar outra coisa que também é quadrinho.
É uma briga antiga, talvez só na minha cabeça, de definir o que é o que não é quadrinho. Tentei cercar isso no doutorado, não deu muito certo, e ouvi de muita gente inteligente que o caminho mesmo era não tentar definir, não fazer muros, não dizer “isso é quadrinho, isso não é”. Eu ainda era resistente. só senti o clique na cabeça com essas aspas do cara da Lagon.
“Um lugar onde as modalides visuais de escrever podem se reinventar, um lugar onde elas podem se mesclar com outras mídias”.
Em vez de se definir, de levantar muros, se abrir e contaminar outras áreas.
Bom pra matutar.
O terror da minha semana foi traduzir uma edição inteira de CONAN THE BARBARIAN narrada em rimas. Cinco manhãs em que a minha primeira hora de trabalho do dia consistia em suar resolvendo umas três páginas, às vezes quatro. Foram seis no último dia. Soltei uma nuvem inteira de ansiedade quando acabou. Crom gargalhou. Falta revisar.
Achei essa carta de um leitor da edição original. Tradução: “Num quero poeminha no meu Conan!”
PROJETO SOPA está entegue.
THE STRANGE DEATH OF ALEX RAYMOND segue na primeira fase de tradução. Esta semana saíram 103 páginas.
Terminei as 100 páginas que faltavam na primeira fase do PROJETO TESLA. Revisões a partir da semana que vem.
Além daquele Conan com rimas, rolaram mais umas 70 páginas de outro projeto Conaniano.
Colaborei com o 2Q News de domingo passado, que começa com um mamilo polêmico e teve a exclusiva das capas brasileiras de JERUSALÉM:
E colaborarei com o Lançamentos da Semana, que saiu excepcionalmente na quinta-feira:
Dei duas aulas para a décima turma do Curso Prático de Tradução de Livros - Inglês-Português na Labpub. (Mostrei páginas exclusivas de uma tradução que ainda vai sair. Se circularem por aí, os culpados são os alunos.)
E aí a semana acabou.
Os links abaixo são de trabalhos meus que foram lançados há pouco ou serão lançados em breve. Comprar pelos links da Amazon me rende uns caraminguás. Se puder, use os links. As datas podem mudar a qualquer momento e eu não tenho nada a ver com isso.
em agosto
PONTOS FRACOS, Adrian Tomine, nemo
ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE, Bob Al-Greene (baseado no livro de Agatha Christie), harpercollins brasil
ANTES DISSO: COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI E PARA ONDE PODEMOS IR - A HISTÓRIA DA HUMANIDADE, Oliver Jeffers, harpercollins brasil
VOCÊ DORME COMO UM MONSTRO?, Guilherme Karsten, harpercollins brasil
KULL: A ERA CLÁSSICA VOL. 2, Roy Thomas, Don Glut, Gerry Conway, John Severin, Marie Severin e outros, panini
CONAN, O BÁRBARO 4, Jim Zub, Doug Braithwaite e outros, panini
STRANGER THINGS E DUNGEONS & DRAGONS, Jody Houser, Jim Zub, Diego Galindo e Msassyk, panini
LÚCIFER - EDIÇÃO DE LUXO VOL. 4, Mike Carey, Ryan Kelly, P. Craig Russell, Marc Hempel, Ronald Wimberly e outros, panini
ZDM - EDIÇÃO DE LUXO VOL. 2, Brian Wood, Kristian Donaldson, Nathan Fox, Riccardo Burchielli, Viktor Kalvachev, panini (traduzi metade das histórias e os extras)
em setembro
O ABOMINÁVEL SR. SEABROOK, Joe Ollmann, quadrinhos na cia.
SENHOR DAS MOSCAS, Aimée de Jongh (baseado no livro de William Golding), suma
A ESPADA SELVAGEM DE CONAN 1, John Arcudi, Max von Fafner, Jim Zub, Patrick Zircher, Robert E. Howard, Roy Thomas, panini
CONAN, O BÁRBARO 5, Jim Zub e Roberto de la Torre, panini
OS INVISÍVEIS EDIÇÃO DE LUXO vol. 2, Grant Morrison, Steve Yeowell, Steve Parkhouse e vários, panini
CONAN, O BÁRBARO: A ERA CLÁSSICA VOL. 8, James Owsley, Val Semeiks, Geof Isherwood e outros, panini
LOBO OMNIBUS VOL. 1, Keith Giffen, Alan Grant, Val Semeiks, Martin Emond e outros, panini [traduzi um terço do omnibus]
MOONSHADOW, J.M. DeMatteis, Jon J. Muth, pipoca & nanquim [reimpressão]
em outubro
MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO - LIVRO 2, Emil Ferris, quadrinhos na cia.
em novembro
GRANT MORRISON E A HISTÓRIA, de Mario Marcello Neto, Felipe Radünz Krüger, Artur Lopes Filho e Márcio dos Santos Rodrigues (orgs.), Dokan Editora - escrevi a introdução
A ESPADA SELVAGEM DE CONAN 2, Jim Zub, Richard Case, Patrick Zircher, panini
vem aí
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
SAPIENS VOL. 3, David Vandermeulen e Daniel Casanave, quadrinhos na cia.
COMIC BOOKS INCORPORATED, Shawna Kidman
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS e ATRAVÉS DO ESPELHO, Lewis Carroll
FEEDING GHOSTS, Tessa Hulls, quadrinhos na cia.
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
+ Adrian Tomine
+ Tom Gauld
+ Dan Clowes
+ Shaun Tan
+ Will Eisner
+ Gato Pete
+ Mike Birchall
+ Lore Olympus
+ Projeto Camalote
+ Projeto Tylenol
+ Projeto Fritas
+ Projeto Baleial
+ Projeto Kitty
+ Projeto Sopa
+ Conan
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
“A porta do estúdio de Ditko estava atravancada por centenas de cartas de amigos e fãs, que ele nunca leu, entregues durante o mês em que ele não estava. Nas paredes haviam cenas da natureza, imagens da infância. Seu apartamento tinha uma pasta de recortes, material de décadas. Todos sobre o Homem-Aranha.”
A matéria excepcional da Rolling Stone sobre Steve Ditko, um dos criadores do Homem-Aranha.
“Comprar livros é uma forma de afirmar a esperança que viveremos o suficiente para ler tudo que nos interessa. Uma ilusão, claro. Mas uma forma de otimismo.”
Irene Vallejo, citado no texto de Alex Castro na QuatroCincoUm.
(Há um bilhão de anos, escrevi um texto sobre “O tsundoku sincero” no Blog da Companhia.)
Gostei de todos episódios do KRAZY KAZT (baita nome), mas esse foi meu preferido. Escute aqui.
A campanha no Catarse de JERUSALÉM, livro de Alan Moore, começou ao meio-dia de ontem, dia 1. Bateu R$ 100 mil em menos de quatro horas, com uns trezentos e cinquenta apoios. JERUSALÉM vai ser lançado em três volumes, que vêm em uma caixa. Você só pode comprar a caixa, que é bem cara: R$ 245 (mais frete) na modalidade mais barata. Nesse momento, a campanha já passou dos 600 compradores e se encaminha para arrecadar R$ 200 mil.
No Brasil de 2024, Alan Moore vendeu mais de mil livros - livros caros, bem caros - em quatro horas. É ele:
MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO 2. Daqui. Outubro e a edição com minha tradução tão quase aí.
A virapágina é a newsletter de Érico Assis. Eu mesmo. Sou jornalista e tradutor, e escrevo profissionalmente sobre quadrinhos desde 2000. Publiquei dois livros: BALÕES DE PENSAMENTO 1 [amazon] e 2 [amazon]. Tem mais informações no meu website ericoassis.com.br.
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Que você vire ótimas páginas até a semana que vem.
Sobre o processo de tradução do título: interessantíssimo. Meu ponto de vista acaba enviesado pelo texto, mas acho que "Zanzando" era muito melhor.
Acho que finalmente descobri um codinome de projeto, mas tenho tanta certeza que nem vou colocar aqui o que é para não atrapalhar. Já falei em casa e a notícia foi muito bem recebida!