013: ALAN MOORE, SALVADOR DO BRASIL
magia, fascismo, lula e bardos que dão medo | travado em alice | capitalismo | páginas viradas
Alan Moore está um pouco mais corcunda que de costume. Deve ser das décadas de postura errada na frente da máquina de escrever e do computador. Ele toma um gole da xícara que diz “Lista de Afazeres: 1) Acordar; 2) Beber Meu Chá; 3) Ser um Mago Foda”. Depois do gole, ele faz aquela coisa que seu avô faz com a língua, como se fosse lamber um dedo pra virar a página do livro, mas esqueceu de levantar o dedo. Tipo um bode. Começa o papo.
O papo é com a escritora Heather Parry e foi um convite do Fundo Escocês para a Leitura para a Semana Escocesa do Livro. Aconteceu no último domingo, dia 19, exatamente um dia após Moore completar 70 anos. Você pode assistir aqui.
Pelo que se entende da entrevista, Parry e Moore mantêm contato há algum tempo. Ela tem enviado livros de autoras sul-americanas para Moore – eles citam Samanta Schweblin, Fernanda Trías, Ariana Harwicz, Mariana Enríquez (nenhuma brasileira) – e Parry foi uma leitora-beta de LONG LONDON, a série que Moore está escrevendo.
É ali pelo minuto 42 que Parry lê uma pergunta de quem está assistindo: “Qual é o papel da magia que o senhor vê na luta atual contra o fascismo e na derrocada do capitalismo?”
Moore explica que não é função da magia atingir resultados materiais - não diretamente - e que tudo que você consegue é “mudar sua consciência. E se você dá conta disso, você consegue se transformar numa pessoa que pode dar um fim no fascismo para todo o sempre.”
E aí ele pergunta se pode pode dar um exemplo e se exibir só um pouquinho. É quando ele fala que foi O Salvador do Brasil.
Se nunca ouviu Moore, leve em consideração que, entre outras coisas, ele é um humorista ácido:
Há exatamente um ano, minha filha me enviou a carta de um jornalista brasileiro, na qual ele dizia que as eleições estavam chegando, que era Bolsonaro contra Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro era um fascista de cima a baixo, ele estava prestes a arrasar a Amazônia, expulsar os povos indígenas e tudo mais. E o jornalista me dizia que eu tenho muitos fãs no Brasil. Ele perguntou: “O senhor escreveria uma carta explicando por que todo mundo deveria votar em Lula, não em Bolsonaro, para dar um fim no fascismo no Brasil? O senhor tem cinco dias.”
Fiquei acordado até tarde e escrevi a carta que começa dizendo “Caríssimo Brasil”. Escrevi com o coração. Terminei cansado, mas ficou um texto bom. Parece que a carta foi enviada ao Lula e Lula postou para o eleitorado brasileiro e conseguiu se eleger com uma margem muito pequena.
Eu sei que não foi necessariamente por causa da carta que eu escrevi, mas vou dizer que foi. E se algum dia alguém quiser… Eu nunca tive nenhum título acadêmico para botar depois do meu nome, mas se quiserem colocar “Salvador do Brasil” em colchetes, cairia bem.
Então é isso: você tem como provocar alguma coisa porque você mexeu na sua consciência. É assim que se faz. É assim que a magia pode causar grandes efeitos na cultura a que estamos amarrados.
Heather Parry diz: “E, de repente, você acaba salvando o Brasil.”
Moore: “Sim, você pode salvar o Brasil. Mas essa parte eu já resolvi.”
A carta de Moore ao Brasil foi publicada em 28 de outubro de 2022, dois dias antes do segundo turno da eleição para presidente. Está aqui. Quem fez o pedido a Moore e traduziu a carta foi o administrador da Alan Moore BR, página de Facebook dedicada ao mago. Não é um jornalista, como Moore o identifica, mas é um fã dedicado de Moore – e que prefere não se identificar.
Embora não se confirme se a carta chegou aos olhos de Lula, ela circulou pelas redes sociais e toda a imprensa brasileira naqueles dias insanos antes das urnas. Lembro de avisar ao Omelete sobre a carta e, compreensivelmente, os editores perguntarem se havia alguma forma de confirmar a veracidade. Eram dias insanos, como eu falei. Mas confirmamos.
Na carta, Moore lembra que é anarquista e, portanto, normalmente não demonstraria apoio a político algum. A situação atual do mundo fez ele sair do seu normalmente e da sua convicção para usar a magia, a seu modo, contra o fascismo. Não só no Brasil, mas também na sua querida Inglaterra.
Foi quando viu Moore declarar apoio a Jeremy Corbyn, sete anos atrás, que o editor da Alan Moore BR percebeu essa mudança no pensamento do escritor. Isso que levou ao convite para a carta, como ele me contou abaixo:
Era 2016, Alan Moore declarou apoio a Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista inglês. À primeira vista poderia parecer uma atitude previsível para alguém com o perfil dele, mas, para o leitor mais habituado às opiniões e crenças de Moore, aquilo era uma metamorfose provavelmente tão radical quanto seu ingresso na magia ou sua saída dos quadrinhos.
Moore sempre foi um iconoclasta. Sua visão dos quadrinhos frequentemente expressava isso a cada página, declarando a desnecessidade de mitos desde bem antes de WATCHMEN. Seu posicionamento político anarquista também dizia exatamente isso.
Aquela reconfiguração do anarquismo de Moore resgatou a frase de um velho professor que uma vez disse: "política é a escolha do mal menor". Talvez fosse isso. Para Moore, Corbyn talvez fosse o mal menor, ou tolerar o modelo democrático existente possivelmente fosse menos pior do que o risco de perdê-lo.
Aqui no Brasil, no final de outubro de 2022, se avizinhava o segundo turno, que poderia desdobrar em ponto sem volta para muitas coisas. Até agora não temos dimensão exata da catástrofe que poderia ocorrer, mas era uma situação que envolvia instituições elementares e essenciais. Por isso, achamos que Moore poderia ter algo a dizer. Talvez não propriamente sobre nossas eleições, mas algo importante em caráter mais geral.
Frequentemente ele situa Northampton, sua cidade natal, como um microcosmo que reproduz padrões universais das outras cidades e vice-versa. Nas condições apropriadas, a paralisia do Doutor Strangelove passa e ele se levanta, e esse parece ser um fenômeno igualmente universal.
A cinco dias da eleição, decidimos escrever a Moore e perguntamos se ele gostaria de fazer uma carta de apoio ao Lula. Ou talvez duas linhas sobre a importância da Democracia em face do Facismo. Moore nos retornou uma extensa carta, tratando de vários temas que se encontravam no fio da espada, e declarou apoio a Lula.
Jamais imaginamos que pudesse ter recepção tão intensa. Muitos canais de imprensa reproduziram a íntegra ou trechos. Ante dúvidas sobre a autenticidade, a página oficial dele republicou o texto. Também sofremos uma virulenta campanha de ódio e diversas tentativas de derrubar e de hackear a página. Depois soubemos pela filha dele que Moore entrou pela madrugada escrevendo a carta e fez isso com muito carinho e gosto.
Naquela noite, o Brasil tirou o sono de Alan Moore.
Alan Moore da Silva. Vi aqui.
Não foi a carta, não necessariamente. Mas Moore lembra que o poder da magia está em mudar a consciência do mago a ponto de ele acreditar que tem um poder – como o de botar fim no fascismo. E Moore enfeitiça pela escrita.
Tem outro trecho da entrevista, anterior à fala sobre o Brasil, que provavelmente seja o melhor daquela hora de papo.
Eu sempre me lembro da tradição mágica. Se você ofendia um mago, ele podia te rogar uma maldição e você, sei lá, ia ficar com a mão esquisita por uns seis meses. Se você ofendesse um bardo, o bardo te rogava uma sátira, e você ia ser ridículo aos olhos de seus contemporâneos, aos olhos de sua família, aos seus próprios olhos. Se a sátira fosse boa, ela perdurava. Depois que você morresse, ainda ia ter gente rindo da sua cara.
É por isso que as pessoas tinham mais medo de bardos do que de um feiticeiro, de uma bruxa. É isso que eu quero ver de novo. Que as pessoas tenham medo de quem escreve.
Alan Moore in Conversation with Heather Parry, no YouTube.
Alan Moore (Saviour of Brazil) On Magic, Fascism & What We Can All Do, no Bleeding Cool.
Eu estava me escondendo da tradução de THROUGH THE LOOKING GLASS. Travado. Assustado. Bloqueado. Procrastinando. Com preguiça. Um pouco de tudo.
Recapitulando: fui convidado a traduzir ALICE IN WONDERLAND e THROUGH THE LOOKING GLASS, os dois livros mais famosos de Lewis Carroll, a duologia de Alice. WONDERLAND está pronto e entregue desde agosto. Respirei um pouco e comecei a traduzir LOOKING GLASS em meados de setembro.
Fiz a primeira etapa de tradução, do livro inteiro, sem dar bola para rimas e jogos de palavras – ficaria tudo para a segunda etapa. Comecei a segunda etapa, passei horas e horas e horas terríveis resolvendo JABBERWOCKY. Gravamos um Notas dos Tradutores a respeito do que eu tinha feito até ali.
Depois disso, foi como se toda minha energia pra Alice tivesse se esgotado. Travei. Não queria abrir o arquivo.
É um projeto que sofre do maior veneno para o frila procrastinador: não combinei prazo com a editora. E tenho outras coisas para fazer, como vê quem acompanha meus diariozinhos aqui na newsletter. Alice sempre era menos importante do que todos os outros.
Meu editor mandou uma mensagem absolutamente educada, tranquila, inócua no fim da semana passada: “Você conseguiria passar uma previsão de entrega?” Encarei aquilo como espadas na minha cara, acuado contra um muro.
Estava na hora de derrubar o muro. Passei a segunda-feira tomando fôlego, reli o que tinha feito e comecei a encarar os capítulos que faltam a partir da terça. Dois por dia. São doze, sendo que o capítulo 10 e 11 praticamente não contam.
Encarei as rimas. Bolei nomes brasileiros para Tweedledum e Tweedledee (guardem as pedras, não sou o primeiro tradutor que faz isso), traduzi a musiquinha terrível do Tweedledee. Fiz a mesma coisa naquele capítulo com o Humpty Dumpty (que também vai ganhar nome brasileiro) e queria me defenestrar a cada estrofe da música do Cavaleiro Branco sobre o Velho na Porteira. Alice também quer, no livro.
Agora o prazo está definido: 10 de dezembro. Faltam dois capítulos nesta etapa de revisão. Quero revisar mais duas vezes, cuidar principalmente da fluência.
E aí entregar, respirar e, quem sabe, sentar e ler a tradução do Caetano Galindo para os dois livros carrolleanos, recém lançada pela Antofágica. Já chegou aqui em casa, mas pedi para a Marcela esconder e não me deixar cair em tentação.
Tanto por motivos de prazo estourando quanto para abrir espaço mental para THROUGH THE LOOKING GLASS, esta semana terminei e entreguei um quadrinho grandão para a Panini, assim como terminei e entreguei CHRISTIE10. Do quadrinho grandão, faltavam 223 páginas. Da Agatha Christie, faltavam umas 100 páginas – mais umas seis de notas culturais e de referências que eu sempre escrevo quando traduzo a vetusta senhora do crime. Você já ouviu falar de Shovel Down? E do National Trust?
Ainda consegui trabalhar em 32 páginas daquele quadrinho muito divertido para a Quadrinhos na Cia. - vamos chamar de Projeto Siclos - e 30 do livro infantil que surgiu na semana passada - vamos chamar de Projeto Úmero. O Projeto Úmero tem prazo apertado e devo entregar na semana que vem – é curto e ótimo de traduzir. Siclos ainda vai me tomar umas três semanas.
Dá para fazer tudo isso acuado contra o muro. Aos poucos eu desmancho os tijolinhos desse muro e chego do outro lado.
Os links abaixo são de trabalhos meus que serão lançados em breve. Comprar pelos links da Amazon me rende uns caraminguás. Se puder, use os links.
em novembro
SANDMAN APRESENTA VOL. 7: BAST & O CORÍNTIO, Caitlín R. Kiernan, Joe Bennett, Darko Macan, Danijel Zezelj, panini
A BRIGADA DOS ENCAPOTADOS, K.W. Jeter, John K. Snyder III, Dave Louapre, Dan Sweetman, Alisa Kwitney, Guy Davis, John Ney Rieber, John Ridgway, panini
ANIQUILAÇÃO: A CONQUISTA (OMNIBUS), Dan Abnett, Andy Lanning e grande elenco, panini [traduzi só os extras]
CAPITÃ MARVEL VOL. 9, Kelly Thompson, Sergio Dávila, Marguerite Sauvage, Torun Gronbekk e mais, panini
ESTÁ TUDO BEM VOL. 1, Mike Birchall, suma
LITTLE NEMO VOL. 2: 1910-1914, Winsor McCay, figura [a tradução é de Cesar Alcázar; eu escrevi um posfácio compriiiido]
em dezembro
KULL: A ERA CLÁSSICA (OMNIBUS), Roy Thomas, Berni Wrightson, Marie Severin, John Severin, Doug Moench, John Bolton, Chuck Dixon, Dale Eaglesham e grande elenco, panini
CONAN, O BÁRBARO: A ERA CLÁSSICA VOL. 7, James Owsley, John Buscema, Val Semeiks e mais, panini
TERRA LIVRE: UM CONTO DA CRUZADA DAS CRIANÇAS, Neil Gaiman, Chris Bachalo, Alisa Kwitney, Jamie Delano, Peter Snejbjerg, Toby Litt, Peter Gross e mais, panini
SANDMAN APRESENTA VOL. 8: TEATRO DA MEIA-NOITE, Neil Gaiman, Matt Wagner, Teddy Kristiansen e outros, panini [metade do volume tem outras HQs por outros tradutores]
em janeiro
CONAN, O BÁRBARO 1, Jim Zub, Roberto De La Torre, José Villarubia, Dean White, panini
NOVEMBRO VOL. 4, Matt Fraction, Elsa Charretier, Matt Hollingsworth, risco [em campanha no catarse!]
vem aí
SHORTCOMINGS, Adrian Tomine, nemo (anunciado na semana passada!)
NUNCA ME ESQUEÇAS, Alix Garin, moby dick
VOLEUSE, Lucie Bryon, risco
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
CHEW VOL. 4, John Layman e Rob Guillory, devir
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
COMIC BOOKS INCORPORATED, Shawna Kidman
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, Lewis Carroll
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
+ Adrian Tomine
+ Tom Scioli
+ Tom Gauld
+ Ray Bradbury
+ Shaun Tan
+ Will Eisner
+ Lore Olympus
+ Emma Orczy
+ Lúcifer
+ Agatha Christie
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
Esta semana, infelizmente, não tem páginas viradas porque não consegui ler quase nada. Prometo que vou ser melhor na próxima edição.
Pode ser só essas capas do Hayden Sherman para BATMAN ’89: ECHOES n. 3 e SUPERMAN ‘78: THE METAL CURTAIN n. 4? Vi aqui.
Você leu a VIRAPÁGINA, newsletter de Érico Assis. Sou jornalista e tradutor, e escrevo profissionalmente sobre quadrinhos desde 2000. Publiquei dois livros: BALÕES DE PENSAMENTO 1 [amazon] e 2 [amazon]. Tem mais informações no meu website ericoassis.com.br.
Se eu aceito receber pela sua assinatura? Claro, muito obrigado pela pergunta! Se você quiser e puder, paga R$ 12 por mês ou R$ 120 por ano para apoiar a continuidade da newsletter.
Obrigado a quem já contribuiu, obrigado a todos que assinam e obrigado por virar páginas comigo.
Terminei de ler hoje o segundo Balões de Pensamento e fiquei triste pensando que não vou mais ter essa companhia tão boa no trajeto pro trabalho. Aguardo ansiosamente por mais.
Não sei se você já leu, mas ontem li Meu Irmão Caçula, da editora Nemo. Automaticamente virou meu quadrinho preferido de 2023, mas me destruiu completamente.
E sobre a newsletter da semana passada, finalmente li Patos e é mesmo muito bom, merece todos os elogios e prêmios, mas acho que o hype estragou ele um pouco pra mim. Aconteceu a mesma coisa com O Grande Vazio. Dois dos quadrinhos que mais esperava ler no ano e não achei absolutamente incrível como todo mundo está comentando, mas com certeza valem a leitura.
Eu não lembro quem traduziu Sandman nos anos 90, mas eu AMEI traduzirem os nomes mitológicos que ele criou.
Brasileiro tem sei lá cargas d'água porque um preconceito insano contra traduzirem termos específicos de língua estrangeira.
O que é melhor ler. Mister E ou Mister Io?
É genial.
E olha lá o que você vai fazer com o Conan do Windsor-Smith, hein!!!!
Brincadeira. :D