“Abril de 2016. Era aniversário da minha esposa, saímos pra jantar com as crianças e estava tudo ótimo, tudo muito bom, e eu ia morrer.
Meu peito explodiu. O mundo ficou escuro. Me encostei no meu mais velho, abracei e pedi desculpas porque tinha que ser assim, na frente dele. Me desculpa.
Depois, no hospital, falei que eu estava muito doente ou muito doido. Eu torcia que eu estivesse doido; doido se recupera. Orei a Deus pra que eu estivesse doido. Fizeram um monte de exames. É isso aí, eles disseram: você está doido. Eu disse: Graças a Deus.”
É da Introdução de Tom King a SENHOR MILAGRE: EDIÇÃO DE LUXO. Saiu no fim do ano passado no Brasil, com tradução de Paulo Cecconi. Mais à frente no texto, King diz que queria falar, no quadrinho, “da ansiedade geral, desse medo que paira sobre nós, onipresente, do qual tem tantos querendo fugir, querendo enfrentar, querendo fugir de novo. Eu queria escrever sobre como se lida com essa dor, com essa sensação nova de que existe uma coisa terrível lá fora, uma coisa vil, que, independente do que a gente fizer, sempre, sempre vai existir, que sempre é.”
Tinha a ver com o início da Era Trump, mas mais com depressão e ansiedade – dos quais King já declarou que sofre – e de todos os gatilhos que o mundo oferece para quem sofre desses males.
Já ouvi de gente que sofre dos mesmos problemas dizer tanto que o quadrinho é quanto que não é uma boa alegoria sobre como fugir – o Senhor Milagre é um mestre de fugas – da depressão e da ansiedade. Mas é difícil não considerar um quadrinho bonito, ousado e, apesar do tema, com bons momentos engraçados. Pesado, mas não serião o tempo todo.
Tem final feliz, aliás. Ou não, dependendo de como você interpretar. Como diz o refrão do quadrinho: “Darkseid é”.
Lembrei disso porque, no início deste mês, o outro autor do quadrinho, Mitch Gerards – que fez desenho e cores – declarou durante um painel em convenção que SENHOR MILAGRE só saiu porque os editores da DC Comics dormiram no ponto.
King e Gerards estavam contratados para fazer a minissérie do Senhor Milagre, a proposta (o pitch) estava aprovada e eles começaram a trabalhar. O material só não tinha entrado no cronograma da editora. E aí:
“A gente acha que a DC literalmente esqueceu que ia fazer [o quadrinho]”, disse Gerards, segundo relato do Popverse. “Eu fiz três edições e entreguei: ‘Ó, são essas.’ E eles: ‘Quê?! Mas fala de suicídio! A gente não tem como publicar.’ E eu falei uma coisa do tipo: ‘Tão prontas.’”
Na página 11 da primeira edição, logo depois de uma sequência introdutória, Senhor Milagre aparece caído no chão do banheiro com sangue escorrendo dos pulsos.
As doze edições do quadrinho saíram, cada uma foi comentada e louvada como pouco se via e se vê entre os gibis de hominho. Gerards ganhou dois prêmios Eisner nos dois anos em que a mini estava rolando, King também ganhou de melhor escritor por dois anos seguidos e o conjunto da obra ganhou mais um Eisner após a conclusão.
Quando a série estava pela metade, escrevi o texto abaixo. Fala do contexto atual de fazer gibi de hominho numa Marvel e DC, e de como é um milagre (rá!) quando esse contexto consegue gerar um quadrinho muito, muito bom.
Eu só não sabia que milagres dependem de os editores dormirem. Você fica pensando que o problema de verdade é quando os editores trabalham.
Milagres
(publicado no Blog da Companhia em março de 2018)
Esses dias amiga me falou que, diferente dela, minha dieta de quadrinhos aceitava tanto material de mais, digamos, proteína quanto “esses gibis de bilhões de dólares aí”. Não era para me ofender. Só uma constatação.
Não é ofensa, mas tem um pouquinho de preconceito. Já existe um preconceito mais amplo contra toda a mídia quadrinhos, mas existe também um preconceito interno que separa estes quadrinhos aqui daqueles de lá. Os gibis bilionários, claro, seriam os de super-heróis. Os proteicos seriam o que se vê, por exemplo, no catálogo da Companhia das Letras. Se você quer apresentar HQ pro mundo ignaro, não dá pra ser um gibi do Batman, né?
Ou dá?
Sim, os super-heróis, todos os descendentes do Superman (80 anos este ano), presente estadunidense ao mundo, são como a TV: onipresentes, baratos, coloridos, atraentes, fáceis, produzidos em série, em ritmo constante. Editoras grandes, tal como as emissoras, conseguem contratar o melhor autor que gostaria de ter um salário relativamente fixo em troca de serviços relativamente sem risco.
Ainda como a TV, a grande, máxima, precípua função dos gibis de super-herói é manutenção de marca: os canais são movidos pela publicidade dos anunciantes; os gibis de super-herói, pela publicidade de si mesmos – a que gera os filmes, os bonecos, as comic cons, as camisetas, os enfeites de festa de aniversário e, aí sim, os bilhões.
Se desse plano comercial sair alguma coisa que, aqui, só para fins de o texto não ficar longo demais, vamos chamar de arte… só pode ser acaso.
O caso é que: há acasos. E eu leio os gibis bilionários por causa desses acasos. Admito inclusive que zapeio canais ruins e saio à caça no streaming até chegar nos acasos, na arte. Porque arte acontece.
O gibi de super-herói que mais se encaixa nestes acasos, no momento, chama-se SENHOR MILAGRE. É um gibi padrão norte-americano: sai quase todo mês, tem 20 e poucas páginas coloridas e é garantido que algumas dessas vão ter troca de sopapos. É também, como muito gibi de super-herói, recauchutagem de uma ideia antiga: o Senhor Milagre existe há quase cinquenta anos e subsiste em grande parte por respeito ao seu criador divinificado Jack Kirby.
SENHOR MILAGRE, porém, é uma história fechada, pensada para se concluir em doze revistas. Já saíram sete. A sexta edição foi uma espécie de grande paródia condensada do gibi de super-herói: Senhor Milagre e esposa, a também super-heroína Grande Barda, invadem a base do inimigo, enfrentam armadilhas e monstros, espancam ou matam capangas… enquanto discutem a reforma da casa.
“O armário embutido vira outra peça. Com o pedaço que a gente tirar da cozinha. Que vai virar banheiro.”
“A gente não tem um banheiro?”
“Agora vai ter dois.”
A sétima edição, por outro lado, é um retrato pungente do nascimento do primeiro filho de Milagre e de Barda – naquele dia tenso de hospital, com médicos e enfermeiras dando informação pela metade, a família doida na volta e a incerteza absoluta do que vai acontecer ali e depois. Elevado à potência super-herói.
Milagre e Barda também já tiveram páginas para discutir Descartes, depressão e suicídio. O desenhista, Mitch Gerards, é minucioso em expressões, comedido nas cores e nos enquadramentos, sienkiewicziano nos detalhes como retículas e distorções digitais. O roteirista, Tom King, declarou que quer retratar o clima de incredulidade e insegurança diária nos tempos de Trump e propor o que se faz numa época dessas. Críticos comparam a TWIN PEAKS. A conclusão da história deve sair no final do ano.
King, o roteirista, também é escritor atual do horário nobre dos gibis de super-herói, a revista mensal do Batman, e faz com Batman algumas experiências tão curiosas, inesperadas e artísticas quanto as que se vê em SENHOR MILAGRE. Quem lê os quadrinhos de mais proteína pode não acreditar, mas, olha, o que tem de narrativa experimental e temática nessas BATMAN ou SENHOR MILAGRE não faz feio na frente de um AQUI, um MENSUR, um ASTERIOS POLYP.
É óbvio que nem todo quadrinho de super-herói é assim. Você tem que zapear, você tem que cavar, e a pilha é grande. O que me incomoda é ter desprezo generalizado pelos tais quadrinhos bilionários porque eles estão condenados, porque estão em crise criativa, esgotamento do modelo, queda de vendas etc. Estão tudo isso, não tenha dúvida. O que não quer dizer que não brotem, vez por outra, milagres.
Tenho falado muito sobre MONICA, a do Dan Clowes. Tem a ver com o prêmio que ela ganhou no final de janeiro, de melhor álbum no Festival d’Angoulême. E outras coisas.
Os cupinhas do Notas dos Tradutores disseram que precisávamos fazer um episódio a respeito de MONICA, então fizemos. Está aqui.
Algumas das palavras novas que aprendi traduzindo só o trecho “O Fulgor Infernal”, que cheguei a pensar que eram problemas de ortografia do Clowes: naptha (nafta), sistren (sororidade), sybil (sibila), tanbark (cortiça) e ateem (algo como “abundavam”).
Também bati um papo com Francisco Castro Jr., do jornal A TARDE, tentando explicar a interpretação do quadrinho que eu usei para traduzir. E de como Monica, a personagem, é o centro do seu próprio universo.
Também rolou essa notícia de que Justine Triet foi convidada para dirigir uma adaptação de MONICA pro cinema, com Cate Blanchett no papel principal. Triet ainda não topou, pois deve estar esperando o resultado das cinco indicações de ANATOMIA DE UMA QUEDA ao Oscar na semana que vem, e a partir daí decidir a carreira. Mas, com ou sem Triet, tem isso: MONICA vai virar filme.
(E me deu desculpa para assistir ANATOMIA no fim de semana.)
Bom, e já dediquei toda uma edição da virapágina a MONICA. Não é um gibi, é um evento.
Ainda falando em MONICA, comentei na semana passada que tive uma sensação muito parecida quando terminei a primeira versão da tradução do Clowes – a de estar perdido, no escuro – e quando terminei a primeira versão da tradução de MINHA COISA FAVORITA É MONSTRO 2. Fiquei um pouco atropelado, desnorteado, sentindo um vazio.
Estou revisando a tradução e entendendo o livro melhor. Reli o primeiro volume para recuperar o clima e acho que minha reação tem a ver com expectativas. Tem uma emoção muito forte no final do livro 2 – se eu disser qual, vai ser spoiler – e acho que foi ela que me derrubou. Quando eu voltei a ler o Livro 2 desde o começo, tudo se encaixou melhor. E entendi como a Emil Ferris é brilhante.
Acabo essa revisão na semana que vem, depois reviso mais uma vez e está entregue.
Desisti oficialmente do projeto férias porque apareceu uma tradução difícil de recusar. É um livro grandão, talvez o maior que eu já fiz, é bem remunerado e vai me dar três meses de tensão. Além disso, me fez testar uma coisa que eu relutava em aprender: ditar o texto para o Word, em vez de digitar. Se você quer perguntar “mas você AINDA não usava isso, Érico?”, eu te entendo, mas não pergunte. Eu já me recrimino bastante por minha conta.
Em quatro dias saíram 120 laudas, o que dá mais que o dobro do que eu consigo normalmente. Ainda estou estudando e aprendendo os macetes, então só vou dizer se é um avanço bom ou ruim – e se aumentou ou diminuiu a quantidade de erros, e consequentemente o tempo de revisão – quando estiver mais acostumado.
Vamos chamar esse livrão, por enquanto, de PROJETO CAMALOTE.
Também fiz a primeira revisão de SENHOR DAS MOSCAS, na adaptação para quadrinhos de Aimée de Jongh. Descobri que, em janeiro, a Jongh ainda nem havia terminado o quadrinho e eu já estava traduzindo. Revisei com a versão final. Reviso mais uma vez e entrego semana que vem.
Tirei algumas horas para resolver as pendências de outra tradução, PROJETO PIZZA1. Na verdade, umas coisas que precisavam de refino e renderam trocas de e-mail e opiniões com a editora. Foi bom. É raro e é ótimo quando a editora te pergunta sobre as decisões de traduções, em vez de passar por cima e decidir como bem entende.
E escrevi a resenha de FIORDILATTE, de Miguel Vila (Veneta, trad. Michele Vartuli), para a Folha de S. Paulo. Não sei quando sai a resenha, mas o quadrinho sai daqui a duas semanas e acho que é um dos grandes desse ano.
Os links abaixo são de trabalhos meus que foram lançados há pouco ou serão lançados em breve. Comprar pelos links da Amazon me rende uns caraminguás. Se puder, use os links.
As datas podem mudar.
em março
SURFISTA PRATEADO: LIBERDADE [EPIC COLLECTION], Stan Lee, John Byrne, Steve Englehart, Marshall Rogers, Joe Rubinstein, Joe Staton, Jack Kirby e outros, panini
VAMPIRO AMERICANO: EDIÇÃO DE LUXO VOL. 5, Scott Snyder, Rafael Albuquerque, Tula Lotay, Francesco Francavilla, panini
CONAN, O BÁRBARO: A ERA CLÁSSICA VOL. 7, James Owsley, John Buscema, Val Semeiks e outros, panini
CONAN, O BÁRBARO 2, Jim Zub, Roberto de la Torre, panini
A BRIGADA DOS ENCAPOTADOS, K.W. Jeter, John K. Snyder III, Dave Louapre, Dan Sweetman, Alisa Kwitney, Guy Davis, John Ney Rieber, John Ridgway, panini
LÚCIFER: EDIÇÃO DE LUXO VOL. 3, Mike Carey, Peter Gross, Ryan Kelly, Dean Ormstron, Craig Hamilton, David Hahn, Ted Naifeh, panini
OS LIVROS DA MAGIA, Neil Gaiman, John Bolton, Scott Hampton, Charles Vess, Paul Johnson, panini [reedição]
ZDM: EDIÇÃO DE LUXO VOL. 1, Brian Wood, Riccardo Burchielli e outros, panini [só traduzi os extras]
em abril
LADRAS, Lucie Bryon, risco [tradução com Ilustralu]
O UNIVERSO DE SANDMAN: PAÍS DOS PESADELOS vol. 2, James Tynion IV, Leandro Estherren, Patricia Delpeche, Maria Llovet, panini
STRANGER THINGS: KAMCHATKA, Michael Moreci e Todor Hristov, panini
SANDMAN APRESENTA VOL. 10: BRUXARIA, James Robinson, Peter Snejbjerg, Michael Zulli, Steve Yeowell, panini
OS INVISÍVEIS EDIÇÃO DE LUXO vol. 1, Grant Morrison, Steve Yeowell, Steve Parkhouse e vários, panini
O magnífico tijolo KULL: A ERA CLÁSSICA VOL. 1, de 950+ páginas, que chegou na minha mesa esta semana. Carinhosamente chamado de “Kullzão”, foi uma das minhas grandes traduções no ano passado. Na foto, meu dedo no Kull.
vem aí
LORE OLYMPUS VOL. 4, Rachel Smythe, suma
SHORTCOMINGS, Adrian Tomine, nemo
ROAMING, Mariko Tamaki/Jillian Tamaki, nversos
HOW TO e WHAT IF 2, Randall Munroe, companhia das letras
CHEW VOL. 4, John Layman e Rob Guillory, devir
KRAZY & IGNATZ VOL. 2: 1919-1921, George Herriman, skript
COMIC BOOKS INCORPORATED, Shawna Kidman
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS e ATRAVÉS DO ESPELHO, Lewis Carroll
mais BONE de Jeff Smith (e amigos), todavia
+ Adrian Tomine
+ Tom Gauld
+ Dan Clowes
+ Shaun Tan
+ Will Eisner
+ Agatha Christie
+ Guilherme Karsten
+ Sapiens
+ Oliver Jeffers
+ Mac Barnett
+ Gato Pete
Todas as minhas traduções: ericoassis.com.br
A primeira e a segunda página de JE SUIS LEUR SILENCE, de Jordi Lafebre. Como é bom viver, pelo pouco tempo que seja, em um mundo desenhado pelo Lafebre. [amazon]
Três páginas de UN ÉTÉ SANS MAMAN, quadrinho miyazakiano de Grégory Panaccione. A maioria das páginas do quadrinho não tem texto, mas estas dos peixes falando são lindas. Não são as únicas lindas. [amazon]
A capa do Julian Totino Tedesco em SOMNA n. 2. [dstlry]
STREET ANGEL: PRINCESS OF POVERTY, de Jim Rugg, uma homenagem a vários quadrinhos. [amazon]
Uma página de FANTASTIC FOUR n. 16 (roteiro de Ryan North, arte de Francesco Mortarino, cores de Brian Reber e letras de Joe Caramagna) - quando Valeria Richards se dá conta que mandar pro espaço o solvente universal que ela e os coleguinhas inventaram pode transformar o Planeta Terra em queijo suíço. Gibis do Ryan North - apesar de desenhistas fracos - são um milagre. [amazon]
CLUBE DA LUTA DA ESQUINA, do Caio Oliveira. Vi aqui.
Você leu a virapágina, newsletter de Érico Assis. Sou jornalista e tradutor, e escrevo profissionalmente sobre quadrinhos desde 2000. Publiquei dois livros: BALÕES DE PENSAMENTO 1 [amazon] e 2 [amazon]. Tem mais informações no meu website ericoassis.com.br.
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Que você vire muitas páginas até a semana que vem.
Ri alto com o "dedo no Kull"
Com dedo no Kull e tudo...mais uma ótima virada de página