Estou viajando. Quando eu viajo, a virapágina tira férias e eu vou na gaveta de textos.
Sei que os textos que escrevi para a COLEÇÃO SNOOPY, CHARLIE BROWN & FRIENDS, da editora Planeta DeAgostini, têm boa aceitação por aqui. Então vai mais um.
Outros da Coleção que publiquei na virapágina:
O que está abaixo foi exatamente o primeiro que escrevi para aquela coleção. Acho que saiu um pouco diferente na versão final. Aqui vai como entreguei.
PIMENTINHA DECIDIDA
Nos Estados Unidos, peppermint patties são tortinhas de chocolate meio amargo que levam no recheio uma pasta branca sabor hortelã – ou de Mentha piperita, o nome científico e mais próximo do inglês. Pattie se refere ao formato de disco, achatado e pequeno, como uma bolacha ou alfajor. O confeito foi criado nos anos 1940 e sua versão mais famosa, da marca York, está à venda em qualquer esquina gringa. Quando você morde uma peppermint pattie, a doçura do chocolate é imediatamente atacada pela acidez do hortelã.
Doce por fora, ácida por dentro? Pode ser uma descrição de Patty Pimentinha, a personagem de PEANUTS conhecida originalmente como Peppermint Patty. Apesar de não ter surgido no início da tira, hoje ela faz parte do grupinho essencial dos PEANUTS, um espaço que conseguiu com sua personalidade forte, suas dúvidas bem particulares sobre a existência – tal como cada personagem de Charles Schulz tem as suas – e uma pitada de controvérsia que atiça os fãs desde que ela surgiu.
Schulz chegou a dizer que Patty é uma personagem tão forte que teria condições de protagonizar a própria tira. Se perguntassem se ela toparia, a Pimentinha decidida prontamente diria que sim.
O Surgimento
Patty Pimentinha fez sua estreia na segunda década de PEANUTS, exatamente na tira publicada em 22 de agosto de 1966. Na tira, ela está conversando com Roy, personagem menor que havia estreado no ano anterior e feito amizade com Charlie Brown e Linus na colônia de férias.
Roy está escrevendo uma carta para Linus. “Ele é bonitinho? Se for, diga que sua grande amiga Patty ‘Pimentinha’ mandou um ‘oi’”, diz a menina de cabelos curtos e três sardas em cada bochecha. “Conta pra ele como eu sou boa no beisebol. Fale bem de mim, Roy, e da próxima vez que a gente brincar de lutinha eu não te dou uma surra.” Roy fica arregalado, a caneta parada em cima da carta.
Nas primeiras falas, já havia um esboço da personalidade: sarcástica, cáustica, talvez um tiquinho violenta. Na tira do dia seguinte, Patty aparece de corpo inteiro e com o “uniforme” que ia perdurar: camisa listrada, bermuda folgada e chinelos. Numa época em que a maioria das garotinhas era obrigada a usar vestido, ela já se afirmava nos trajes.
Para não deixar dúvida, a tira trata de como ela vai invadir o mundo “dos meninos”: Roy lhe diz que esse amigo que ele fez na colônia, Charlie Brown, é muito estranho, “tem a cabeça redonda” e sempre perde no beisebol. Patty berra: “Eu amo beisebol!” e manda Roy telefonar imediatamente para Charlie Brown. “Eu vou assumir o time desse garoto e mostrar como se faz pra VENCER!”, ela diz.
Nas tiras que se seguem, ela cumpre o prometido. Ou quase. Patty tenta ensinar Charlie Brown e equipe a jogar para vencer: sobe no montinho de arremessadora, dá orientações para o time, tenta motivá-los a massacrar o adversário, se desespera com a inépcia geral e, enfim, desiste. “Estamos perdendo de trinta e sete a cinco! Quem é que já viu trinta e sete corridas sujas? É ridículo! Achei que eu tinha como ajudar seu time, Minduim, mas não tem jeito! Vou voltar pro meu canto!”
O canto de Patty, como se já se sugere a partir daí, é um bairro próximo ao de Charlie, Lucy e Linus. Lá moram ela, Franklin, Marcie e este núcleo de personagens que surgiu na segunda e na terceira décadas de PEANUTS.
“Nunca vi um moleque tão esquisito”
Na primeira sequência de tiras, Schulz inventa alguns trejeitos de Patty que vão perdurar. Ela chama Charlie de “Chuck” – “Minduim”, no Brasil – e Lucy de “Lucille”, apelidos que só ela usa. Outra piada que vai se tornar recorrente é que ela não se dá conta que Snoopy não é um cachorro: “Ele joga bem, mas, olha, nunca vi um moleque tão esquisito.”
Apesar de Patty ganhar um beijo de Charlie Brown no nariz – “para dar boa sorte”, ela pede; Charlie obedece sem entender o que está acontecendo –, a paixonite não-correspondida dela por ele é um tema que só vai surgir mais à frente.
A relação de Pimentinha com esportes vai ser tema recorrente. Além do beisebol, ela manja de futebol, hóquei e patinação. Na sala de aula, quando a professora pergunta quais são as quatro estações do ano, a menina responde: “Beisebol, futebol, basquete e hóquei.”
Sua outra característica é o clichê da criança que vai bem nos esportes e mal na escola: suas notas são péssimas. Aliás, sua nota mais frequente é “D-” – 4 ou 5 no sistema numérico. Ela aparece em várias tiras dormindo em sala de aula. (“Quando era criança, eu era um péssimo aluno, igual à Patty Pimentinha”, Schulz escreve em My Life with Charlie Brown.) Numa sequência de tiras de 1975, um dos motivos é revelado: seu pai trabalha até as duas da madrugada e ela não consegue dormir antes de ele chegar.
Patty aparentemente é filha única e criada pelo pai solteiro. Na tira de 27 de setembro de 1973, Marcie lhe pergunta: “Se o seu pai viajou, por que você não fica em casa com sua mãe?”. Patty responde: “Eu não tenho mãe, Marcie!” A ausência da mãe nunca foi explicada em definitivo, mas a maioria dos fãs supõe que ela faleceu quando Pimentinha era menor – tal como Schulz perdeu a mãe aos 19 anos.
O quadro de Marcie em silêncio é um dos mais fortes de toda história de PEANUTS. Depois ela diz: “Acho que vou voltar pra casa e pintar minha língua de preto.”
O característico visual “moleca” de Patty lhe rendeu tanto problemas quanto a transformou em símbolo. Sendo a única menina dos PEANUTS que não usa vestido, ela acaba virando alvo da diretoria do colégio e sua imposição do “código de indumentária”. Primeiro implicam com seus chinelos e a obrigam a usar sapatos. Ela diz que não tira os chinelos porque foram presente de seu pai, que a chama de “joia rara” (como Schulz chamava a filha Jill). Depois, a escola faz um ultimato e obriga-a a usar vestido.
Na tira de 7 de janeiro de 1972, lá vem ela com uma versão comprida de sua camisa listrada, prometendo socar o primeiro engraçadinho que comentar. Um engraçadinho aparece: “Olha só quem tá de vestido!” Patty imediatamente afunda a cabeça do garoto e grita: “ENTÃO TÁ, QUEM É O PRÓXIMO?”
Vez por outra, o colégio e o mundo querem que ela tenha modos mais “femininos”. Vez por outra, Patty cede. Em uma sequência de tiras de novembro de 1974, ela resolve aprender patinação artística – um esporte “mais feminino” – e investe em um uniforme de patinadora com milhões de lantejoulas.
Ícone
Charles Schulz afirmou categoricamente que Patty Pimentinha não é homossexual. Mas o fato de Marcie sempre chamá-la de “senhor” e outras deixas sempre provocaram os leitores. Para fãs de todo espectro sexual, Patty virou ícone queer.
Quando a Suprema Corte dos EUA legalizou o casamento homoafetivo em todo o país, em 2015, a revista Entertainment Weekly comemorou com uma imagem de Patty e Marcie sobre a frase “It’s legal!” (“Legalizado!”).
Na série animada Family Guy, as duas aparecem adultas e morando juntas. “Nossa, Patty, os anos te fizeram bem”, diz Peter, o personagem principal da animação. “Bom, devo tudo à minha cara metade”, diz Patty. Marcie aparece, pergunta “Quem é, senhor?” e dá um beijo na bochecha da cônjuge.
“Eu digo que Patty Pimentinha e Marcie foram pra faculdade, se embebedaram depois de um jogo de futebol e foram pra cama. Imediatamente se deram conta que uma sempre foi apaixonada pela outra. Depois de formadas, mudaram-se para Portland, Oregon, alugaram uma casinha e criam um labrador preto. Marcie está fazendo mestrado em biblioteconomia e Patty virou professora de educação física”, escreve Vikkie Reich, do blog sobre vida lésbica Up Popped a Fox.
As referências na cultura pop e a fan fiction são unânimes quanto à sexualidade de Patty e Marcie. Schulz, mais uma vez, não. Embora sua tira tenha se notabilizado por mostrar crianças discutindo o mundo adulto, provavelmente o autor não queria relacionar os personagens infantis a um tema adulto que ainda gera controvérsia: identidade sexual.
Por outro lado, o mesmo Schulz fazia tiras como a de 14 de novembro de 1974, em que Marcie está tirando as medidas de Patty para o uniforme de patinação artística. “Sua cintura é 58, seu quadril é 71… e seu… seu… hã… o seu… o seu…”. Patty tem que completar: “‘Busto’, Marcie!! É um termo totalmente aceito no corte e costura!” Marcie, caída no chão, finalmente completa a frase: “66 centímetros, senhor!”
Também a tira de 16 de fevereiro de 1980, em que Patty telefona para Marcie às três da madrugada e anuncia: “Estou apaixonada!”. No quadro seguinte, Marcie está (de novo) caída no chão, numa pose que pode ser de arrasada ou de sonolenta, e diz: “Tenho certeza de que você será muito feliz, senhor!”
As interpretações dos leitores nunca pararam de unir Patty e Marcie. Nem a cultura pop. Em um episódio do seriado Big Bang Theory, o personagem Raj diz: “Sempre achei que Patty Pimentinha fosse lésbica”. Leonard responde: “Não, a Marcie que era. A Patty Pimentinha era só atlética.”
“Atlética” também era um termo usado para se referir a Billie Jean King, tenista profissional que chegou a Número 1 dos EUA nos anos 1970. King foi uma das maiores defensoras de igualdade entre gêneros nos esportes – com mais destaque após vencer a “Batalha dos Sexos” contra o tenista Bobby Riggs, em 1973 – e virou amiga íntima de Charles Schulz. Schulz citava King e os dados da sua Fundação dos Esportes Femininos nas tiras.
“Tive uma visão, Minduim… Vejo o dia em que as mulheres terão as mesmas oportunidades que os homens nos esportes!”, ela diz a Charlie em 1979. “Em 1978, o orçamento médio de atletismo interuniversitário para homens era de US$ 717 mil, mas para mulheres era só de US$ 141 mil”, Marcie derrama sobre Linus em outra tira do mesmo ano. “Sabia que as mulheres recebem só 21 porcento do orçamento de bolsas de atletismo?”, Patty pergunta a Marcie. “Se você não me ajudar a apoiar as mulheres nos esportes, Marcie, eu nunca vou lhe apresentar a Billie Jean King” – Patty, de novo provocando Marcie. “Você nem conhece a Billie Jean King, senhor”, responde a amiga.
Billie Jean King é bissexual, fato que só veio a público na década de 1980. Após mais de vinte anos em um casamento hétero, ela uniu-se à sua dupla no tênis, Ilana Kloss, com quem mora até hoje.
Há outro dado sugestivo na biografia de Schulz que é a influência de sua prima, Patricia Swanson, que ele chamava de “Patty”, na personalidade de Patty Pimentinha. Segundo David Michaelis, biógrafo de Schulz, “em agosto de 1959, Patty (...) saiu de São Francisco e veio visitar a Coffee Lane [casa de Schulz e família] com sua colega de quarto Elise Gallaway. Elas viriam a ser modelos para uma das duplas mais significativas de PEANUTS, Patty Pimentinha e Marcie.”
Michaelis entrevistou Patricia Swanson e diz que o temperamento dela e de Pimentinha eram muito próximos. Porém, também segundo o biógrafo, “principalmente após grupos de lésbicas terem afirmado que Patty Pimentinha era uma delas, Schulz ocultou a identidade de sua prima como fonte de inspiração, em respeito à privacidade de Patty.”
Há também os fãs que se opõem à ideia de Patty Pimentinha lésbica, que ressaltam as várias vezes que a menina se apaixonou por meninos. As tentativas que Patty faz de se declarar a Charlie Brown – sempre pateta e abstraído –, a breve relação que teve com Chiqueirinho no Dia dos Namorados de 1980, até o interesse que ela desenvolve por Snoopy – o qual ela ainda enxerga como um “garotinho estranho”. No especial de TV Boa Viagem, Charlie Brown (E Não Volte!), ela e Marcie chegam a disputar um garoto chamado Pierre.
“Não quero dizer que Patty, caso pudesse crescer além do requadro, não pudesse, um dia, quem sabe, se aceitar como lésbica”, diz Nat Gertler, do blog AAUGH, especializado em PEANUTS. “Conheci muitas mulheres que saíram com homens até aceitar que não tinham nascido pra isso. Mas se você quer a letra fria do texto, não, não está consagrado e tem um certo perigo em seguir o estereótipo de que todas molecas são lésbicas.”
AAUGHH!
O nome real de Patty Pimentinha? Segundo a tira de 15 de janeiro de 1972, seis anos após sua primeira aparição, é Patricia Reichardt. O sobrenome veio da secretária de Schulz, Sue Reichardt, que tinha Patty como personagem preferida. Seu aniversário? Quatro de outubro, segundo a tira deste dia em 1970, quando ela recebe um buquê de rosas do pai.
(“Quando minha filha Amy completou quinze anos, eu lhe dei um buquê de rosas de presente e disse que em breve ela seria uma jovem linda e que os meninos viriam atrás, provavelmente com presentes. Falei que queria ser a primeira pessoa na vida dela a lhe dar um buquê de rosas”, escreveu Charles Schulz.)
A esposa de Schulz, Jean, diz que Patty e outras personagens surgiram num momento em que a tira corria o risco de virar muito masculina. “Ele precisava de mais garotas”, ela disse em entrevista ao Hollywood Reporter em 2016. O próprio Schulz, porém, em 1987, disse ao The Herald que “nunca tento criar um personagem só porque acho que está na hora. Isso seria fatal. Acho que um personagem novo tem que surgir no que você faz.” Nesta e em outras entrevistas, Schulz repete a história de que Patty surgiu quando ele viu um prato de peppermint patties.
No livro Snoopy’s Guide to the Writing Life, Schulz é citado mais uma vez comentando sua notória antipatia ao nome PEANUTS – que foi criação do syndicate quando a tira chegou aos jornais. “Que palavra horrível. Fale em voz alta: PEANUTS! Eu não suporto nem escrever. É um título terrível. ‘Patty Pimentinha’, esse sim seria título bom pra uma tira. Botei uma personagem com esse nome na minha para que ninguém mais usasse.”
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Meu nome é Érico Assis. Sou jornalista e tradutor. Escrevo profissionalmente sobre quadrinhos desde 2000, traduzo profissionalmente desde 2009. Sou um dos criadores do podcast Notas dos Tradutores, colaboro com o canal de YouTube 2Quadrinhos e com o programa Brasil em Quadrinhos do Ministério das Relações Exteriores. Dou cursos de tradução na LabPub. E escrevo esta nius.
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Sensacional esse texto, me fez gostar ainda mais da personagem!
quando crescer, quero escrever engual tu